o estado de s paulo
O filósofo e historiador Cornelius Castoriadis costumava dizer que as crises do mundo contemporâneo não o impressionavam tanto quanto a mediocridade, coisa que percebia na arte, na filosofia, na literatura e, principalmente, na política, a marcar a identidade espiritual de uma época. As crises podem encontrar saídas, a partir da sociedade organizada, cuja vibração aponta para a retomada do civismo, mas os medíocres, estes, sim, não têm salvação. Sua estrutura amorfa os torna refratários a gestos dignos e os obriga a viver em perpétua cumplicidade com sombras e conluios.
Por isso se diz que a humanidade avança nas fronteiras descobertas pela visão de grandes homens e retrocede nas veredas sinuosas abertas pelo facão de grandes medíocres. Quem assistiu à performance do presiden te da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, na semana passada, conseguirá entender a razão por que o Brasil está sempre correndo atrás do bonde da História. Uma nação que exibe o chefe de um Poder Legislativo defendendo publicamente a complacência com parlamentares corruptos só pode mesmo ver fechadas as portas do amanhã.
Severino, como se sabe, é um homem rude que insiste em arrotar ignorância. Não teme permanecer no altar da execração nacional. A maneira descarada como defende a impunidade e faz insinuações sobre a masculinidade de um companheiro que ousa retrucar seu estilo - no caso, o deputado Fernando Gabeira - indica a verdadeira origem da crise que solapa a crença na instituição política: a baixa qualidade da representação parlamentar. Não há como negar. Parcela dos integrantes da Câmara e do Senado contribui para degradar a política. Basta ouvir discursos, em forma de arenga e baixo calão, que agridem tímpanos e distanciam os cidadãos do sistema político. Ante Severinos e assemelhados, as utopias do renascimento da política e de re novação de costumes na vida institucional se desvanecem.
Impressiona o rebaixamento do nível de qualidade dos políticos. Há menos de meio século o Congresso exibia perfis de grandeza que expressavam consistente debate político e profunda noção da missão institucional. A palavra era densa, sábia, inteligente, contundente e fluía aos borbotões no verbo de figuras como Vieira de Mello, Brito Velho, Carlos Lacerda, Aliomar Baleeiro, Adauto Lúcio Cardoso, Nelson Carneiro, Paulo Brossard, Tancre do Neves, Elói Dutra, Djalma Marinho e outros tantos, alguns até mais recentes, cuja história é pouco conhecida no próprio ambiente parlamentar. É bem verdade que a configuração social brasileira, a partir da estrutura de classes e categorias profissionais, tem adquirido, nos últimos tempos, maior representatividade no Parlamento. Mas onde se fazem presentes os sinais da modernidade com seus avanços nas áreas da educação, tecnologia, admi nistração, economia, sociologia, conhecimento da realidade brasileira? Como se explica a convivência entre o progresso material e a monumental queda na qualidade do discurso político? Como se justifica um Severino nos dias de hoje? Alega-se que a atividade parlamentar ganhou fôlego no espaço das comissões, perden do força no plenário.
A especialização terse-ia expandido en-LEO MARTINS
quanto os foros de defesa de grupos se multiplicaram, acompanhando a maré vazante da democracia de massas e a maré enchente da democracia participativa, esta fundada na proliferação de núcleos sociais organizados.
Tudo isso é plausível, mas não suficiente para explicar a debilidade do corpo parlamentar. Olhando direito, distinguiremos um País que aprofundou as for mas predatórias no campo da política, que se torna um grande negócio, acirrando a competição.
Valores e princípios deixam de inspirar os representantes. A degradação espiritual, que se forma na lama da desonestidade pessoal, impulsiona a corrupção material. Multiplicamse formas passivas e ativas de corrupção, nascem os 'mensa leiros' e se alargam as fontes de mesadas e recompensas.
O brasileiro cordial empresta o figurino ao bicho predador.
A crise moral escurece todos os ambientes. Costumes se degradam. Administrações se depravam. Desleixo e improviso se agigantam. A anomia se aprofunda, sob o olhar de tolerância aos erros e ao descumprimento das leis. A ausência de solidariedade se alastra. Cada um por si e Deus por todos - eis o lema do Brasil predador. E assim o poder invisível abre as garras, corroendo estruturas políticas, policiais, educacionais, jurídicas, acadêmicas, religiosas e econômicas, chegando ao núcleo familiar. Até as soluções éticas passam a ser negociadas. A defesa da impunidade, pasmem, é encampada por um presidente de Poder constitucional. Enquanto isso, o presidente da República se orgulha de ter feito apenas o curso de torneiro mecânico do Senai. Ó, tempos! Ó, cos tumes! E ainda há quem diga que bárbara foi aquela época em que o cônsul Lúcio Bruto - não é o que traiu e assassinou César - mandou executar os filhos que conspiravam para der rubar a República romana e restaurar a monarquia.
E qual é a alternativa para evitar a perpetuação de Severinos? Educação. O edifício da cidadania se assenta sobre bases educacionais. Ocorre que a formação de uma geração é coisa para mais de cinco décadas.
Caiamos na real. Não há condi ção de o Congresso melhorar no curto prazo. Medidas paliativas poderão apenas redesenhar ambientes e retocar discursos.
Continuaremos, ainda por bom tempo, a exibir perfis toscos, alguns simplórios, como o pedreiro Luiz Pereira, suplente do deputado cassado Francisco Julião, que chegou à Câmara dos Deputados, vindo de Pernambuco como Severino. Assustado, quis receber orientação. Disseram-lhe para fazer um projeto, apresentá-lo à Mesa Diretora e, assim, ganhar reconhecimento pela ação parlamentar. O coitado não entendeu. Fez o projeto de uma casa e entregou. Era o que sabia fazer.?
Entrevista:O Estado inteligente
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