FOLHA DE S PAULO
De olho na crise brasileira, estou em falta com o desastre em Nova Orleans. No passado, a concentração seria total, pois no caso do navio Prestige, afundado na Galícia, viajei ao local para aprender um pouco com a forma européia de administrar catástrofes.
Mesmo sem uma concentração total ou a presença física, algo impossível nos EUA, esboço um roteiro para compreender melhor o que se passou e aplicar esses ensinamentos por aqui.
Infelizmente, uma tese que defendo algum tempo, acabou se confirmando para mim: os dirigentes políticos americanos, e de tantos outros países, estão desaparelhados para entender o momento que vivemos no planeta.
A única saída para esta incapacidade é convencer a todos os políticos que jamais poderão lidar com o mundo sem uma aliança adequada com os cientistas. Na verdade, as coisas novas que acontecem despontam muito mais na ciência do que na política. Sempre houve uma luta por mais liberdade sexual, mas ela ganhou nova face com a descoberta da pílula anticoncepcional, uma revolução em si.
No caso de Nova Orleans os cientistas já haviam estudado os diques que se romperam. Mais do que isso, montaram simulações sobre os efeitos de uma grande catástrofe natural. O que restava aos políticos, metade do caminho talvez, era simplesmente armar a defesa em sintonia com as simulações.
Num país onde o governo hesita em combater o efeito estufa, subestimando a importância do Protocolo de Quioto, abre-se uma contradição entre a percepção política e o avanço da ciência. No caso de Bush, essa distância se amplia para outros casos, como as pesquisas com célula tronco, por exemplo.
No Brasil não temos nenhuma autoridade nacional para lidar com os grandes desastres. Participei da sala de crise, quando chegou o primeiro furacão em Florianópolis. Nossa iniciativa foi estudar os ensinamentos no Caribe e Flórida e produzir uma cartilha para envolver toda a população.
O pequeno grupo acabou aprendendo um pouco com os caribenhos e norte-americanos. Um dos pontos básicos era retirar determinado tipo de pessoas, com prioridade. Observo agora que foram encontrados 30 corpos de velhos que viviam num asilo em Nova Orleans. Se isso for confirmado, é sinal de que nem os próprios ensinamentos consagrados na Flórida foram respeitados.
Embora tudo isso pareça muito distante do Brasil, considero uma lacuna a ausência de debate. Algumas empresas como a Petrobras, Vale do Rio Doce, Shell, já desenvolveram caros e sofisticados programas de segurança para conter desastres.
O governo deveria reunir essas grandes empresas, estimular a cooperação entre elas e participar de um plano mais amplo onde sejam combinados os recursos particulares e oficiais. Na verdade, o governo poderia estimulá-los até a constituir uma empresa de segurança, em separado, que pudesse realizar algumas tarefas em caso de tragédia.
Na verdade, esses esquemas sofisticados custam dinheiro e ficam ociosos. As empresas poderiam oferecer seu trabalho em toda a América Latina e também em outros países do mundo. O tratamento das catástrofes naturais, a preparação das cidades para as mudanças climáticas é um setor de futuro no capitalismo.
Por que então organizá-los sob estimulo do governo? De novo, olhem Nova Orleans. Se o governo não participa, não determina normas adequadas no interior de um sistema nacional de segurança, pode acontecer de novo o que está acontecendo por lá: os ricos com sua mobilidade, fogem de carro ou avião para o primeiro grande hotel; os pobres ficam para agüentar o tranco.
O Protocolo de Kioto é uma tentativa razoável de evitar grandes mudanças climáticas. Mas com ou sem ele, mudanças já estão em curso. O problema do Protocolo é dar a impressão de que resolve sozinho.
Além do esforço para deter o aquecimento, é preciso reavaliar nosso preparo para enfrentar catástrofes. Tenho insistido nisso. Fui duas vezes a Petrópolis para defender que aquela cidade serrana fizesse um plano para grandes enchentes. A cidade tem um razoável nível de vida, é um centro do software e poderia muito bem abrir o caminho.
A preparação das cidades com projetos inteligentes poderia ser financiada por órgãos internacionais. Abriríamos uma linha de ajuste das cidades do Terceiro Mundo para as novas circunstâncias climáticas.
Se acredito nesse trabalho pioneiro, é porque participo de outro na mesma linha. Abrir caminho para que países do Terceiro Mundo se defendam na Organização Mundial do Comércio, usando as regras do jogo. Com a ajuda de pesquisadores, formulou-se um projeto que pode ser copiado por todos. E teve repercussão na mídia americana.
Pode parecer pretensioso, no auge de uma crise como essa, afirmar que o Brasil abrirá caminhos através de programas sobre aquecimento planetário e comércio global. As chances estão dadas, e a necessidade salta aos olhos.
É preciso superar logo essa fase de glamourização da ignorância e entrar de cabeça na sociedade do conhecimento. Os países pobres sempre sofrerão mais com as mudanças climáticas. Mas ao contrário da divisão material de riquezas, a divisão assimétrica de informações pode ser atenuada com uma decisão nacional de seguir o caminho que os fatos e a ciência nos indicam. Chorar Nova Orleans significa também evitar os seus erros.
Entrevista:O Estado inteligente
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