FOLHA DE S PAULO
A crise política tem monopolizado as atenções. Daqui a algumas semanas, começa a campanha oficial para o referendo sobre o Estatuto do Desarmamento, e a maioria dos eleitores não tem a menor idéia daquilo que será submetido à votação. A qualidade da escolha democrática depende de informação e debate. Ambos estão em falta no debate sobre o desarmamento.
A lei 10.826, de dezembro de 2003, conhecida como o Estatuto do Desarmamento, proíbe o porte de armas por civis, com exceção para casos em que haja ameaça à vida da pessoa. A população será chamada a referendar o tema. No dia 23 de outubro, os eleitores serão convocados a marcar sim ou não à seguinte pergunta: "O comércio de armas e de munição deve ser proibido no Brasil?".
O debate em torno do desarmamento costuma ser apaixonado. Envolve opções ideológicas e lobby setorial. A exemplo de temas como o do aborto e o dos limites da pesquisa genética, as posições não correspondem necessariamente às linhas político-partidárias.
A opção no dia 23 de outubro reflete convicção acerca do grau de interferência que o Estado pode ter sobre a escolha individual. Uma posição liberal rechaçaria a proibição do comércio de armas como um excesso de intervenção do Estado. Tratar-se-ia de restrição indevida da liberdade que o indivíduo teria de defender a si próprio e à sua família.
Alternativamente, o porte irrestrito de armas por civis poderia representar risco à segurança de outros indivíduos e da comunidade. Encerraria custo adicional não computado no valor de mercado da arma e que terminaria sendo pago pela sociedade. Tal fato justificaria a crescente restrição e até mesmo a proibição do porte de arma. Ou os programas que tiveram início nos anos 90 nos EUA e foram recentemente adotados pelo Brasil de incentivo mediante pagamento de entrega de armas ilegais, para posterior destruição pelo governo.
Não há nada de errado em responder à pergunta do referendo de outubro de acordo com convicções ideológicas gerais. Mas seria necessário transmitir ao eleitor alguns elementos importantes para decisão e posterior avaliação das medidas adotadas.
O livro "Direito e Economia" ("Law and Economics"), de Robert Cooter e Thomas Ulen, contém várias ilustrações interessantes sobre a experiência dos EUA. Três pontos chamam atenção em uma das seções finais do livro, dedicada àquilo que os autores chamam de economia do controle de armas.
Em primeiro lugar, os programas de restrição de porte foram eficazes em alguns Estados para impedir que pessoas com antecedentes criminais tivessem acesso fácil a armas. Da mesma forma, os acidentes com armas tendem a diminuir. Tornam-se menos prováveis tragédias como a do colégio Columbine, no Estado do Colorado, que custou a vida de 14 estudantes e um professor, ou como a do jovem que matou três pessoas e feriu cinco em um cinema no MorumbiShopping, em São Paulo.
Em segundo lugar, restam dúvidas acerca da relação entre os índices de criminalidade e o porte de armas por civis. Embora haja uma forte correlação entre os dois indicadores, questiona-se o sentido da causalidade. Cooter e Ulen lembram que países como Israel, Nova Zelândia e Suíça, com elevada disponibilidade de armas entre civis, registram baixas taxas de criminalidade relativamente à dos EUA.
Além disso, a proibição do porte de arma por parte de civis pode ter efeito negativo em uma situação na qual o problema da criminalidade persiste. Alguns autores argumentam que tal fato reduziria o risco para o criminoso, uma vez que as potenciais vítimas estariam desarmadas. Tal argumento será naturalmente levantado no caso brasileiro em que a situação de segurança na maior parte dos Estados é dramática, para dizer o mínimo.
Um terceiro ponto diz respeito à qualidade de implementação da legislação de desarmamento. A combinação de uma lei formalmente restritiva mas sem fiscalização rigorosa pode gerar maior grau de informalidade no comércio de armamentos. Isso tornaria inútil todo o esforço recente no sentido de destruir as armas ilegais.
O referendo constitui oportunidade para discutir os temas acima, bem como um conjunto muito mais amplo de estratégias necessárias para oferecer um mínimo de segurança no Brasil. A produção e a divulgação de estatísticas nacionais e regionais sobre o tema podem ajudar e muito.
Consta que o dinheiro anda curto para o financiamento das campanhas pró e contra o desarmamento. Isso pode ser bom. A sofisticação do marketing político no Brasil não tem contribuído para a democracia. O referendo de outubro é uma oportunidade para mais debate informado e menos propaganda.
Entrevista:O Estado inteligente
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