Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 10, 2005

De olhos bem fechados por Eduardo Graeff -A depressão de Conceição

e-agora


Maria da Conceição Tavares sobre a crise do governo Lula e do PT: "O superávit primário não vai levar o País a lugar nenhum. A corrupção é fruto dessa falta de perspectiva". A culpa, segundo ela, é do secretário do Tesouro Joaquim Levy, a quem ela se refere como "aquele filho de Washington". Por que? "Se o País estivesse crescendo, a corrupção seria menor". O amargo pesadelo de Conceição está na capa de IstoÉ Dinheiro (obrigado pela dica, Charles).

Acho a decepção barulhenta dela mais honesta do que o silêncio "estratégico" de outros intelectuais petistas. "Joguei meus últimos anos de vida num projeto que fracassou". Precisa coragem para dizer – e pensar – isso.

Respeito as lágrimas sinceras. Mas a cegueira, sinto muito. Se o país estivesse crescendo a corrupção seria menor? Só se fosse como porcentagem do PIB. Em termos absolutos, provavelmente seria maior porque haveria mais o que roubar. De resto, essa roubalheira sistemática vem de longe, como diria Brizola. Começou a ser montada nas prefeituras petistas, quando os companheiros nem sonhavam com isso de superávit primário.

Todo mal vem de Washington? Acorde, professora, e pense em Santo André, Campinas, Ribeirão Preto, São Paulo, Porto Alegre, por aí...


A depressão de Conceição

IstoÉ Dinheiro (07/09/05)

A economista mais influente do país desaba diante das denúncias contra o governo que ela ajudou a pôr de pé

POR HUGO STUDART

Maria da Conceição Tavares está chorando. Ela já chorou em público pelo Plano Cruzado, quando suas idéias foram postas em prática. Lacrimejou no Plano Real e derreteu-se copiosamente quando seu protegido Lula chegou ao poder. Mas desta vez as lágrimas de Conceição são amargas. E reclusas. Ela atravessou três meses consecutivos com um cigarro aceso numa mão e um controle remoto na outra, trancada no apartamento, assistindo ao vivo a sessões de CPI pela TV Senado. Aos 75 anos, foi abatida pelas notícias de corrupção no partido que ajudou a empinar, o PT. Conceição, essa portuguesa que já se disse ensandecida de paixão pelo Brasil, entrou em depressão profunda. "Joguei meus últimos anos de vida num projeto que fracassou", tem repetido aos poucos amigos que ela permite que a visitem. De início, caiu doente. Ficou apática, chorava muito. Utilizava adjetivos como frustrada, arrasada, decepcionada. "O choque foi muito grande", justificou. A cada susto, um cigarro. Conceição fumava três carteiras de cigarro por dia. Já fuma quatro e está passando para a quinta. A cada revelação, a hérnia de disco somatiza dores agudas na coluna. O professor Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, subiu ao apartamento para tentar consolá-la. "Vamos fazer desse limão uma limonada", propôs. Lessa acabou chorando junto – e saiu da casa da amiga também ele deprimido. "Conceição está se arrastando emocionalmente, é só angústia", consterna-se Lessa. "Para ela está sendo terrível ver desmoronar todos seus sonhos. É muito doloroso suportar o que está acontecendo com o Brasil, com o PT e com seus amigos petistas".

O senador Aloizio Mercadante conseguiu uma pequena vitória. Na terça-feira 30 telefonou para a professora. "Você já soube da variação parcial do PIB?", indagou, tentando demonstrar euforia com as notícias de retomada do crescimento. Ela se mostrou cética – mas seu humor melhorou. Na noite de quarta-feira, pela primeira vez desde que a avalanche do mensalão começou, Conceição apareceu num debate com o presidente interino do PT, Tarso Genro. Foi surpresa, ninguém esperava que aceitasse o convite. "Pode ser um governo de merda, mas é o meu governo", foi logo avisando, num discurso duro e emocionado. "Enquanto eu tiver saúde, e ultimamente não tenho tido muita, vocês vão ver o que é gritar". Estava ali a Conceição velha de guerra. Ela disse que não se exime de culpa pela crise – ao contrário. "Não culpo o Lula nem o governo, nem mesmo o Palocci", gritou. "Estávamos todos lá, todos, desde que entrei no partido. Não vem agora com ar de quem não tem nada a ver com isso. Então estavam todos dormindo ou de touca?" Seus amigos, a começar por Mercadante, torcem para que a professora continue gritando. Nas últimas semanas, Conceição já expulsou do apartamento do Cosme Velho pelo menos cinco discípulos que ousaram falar mal do PT ou de Lula – entre eles os economistas José Carlos de Assis, Márcio Henrique de Castro e Luiz Eduardo Melin. O amigo Darc Costa, nacionalista da velha guarda, ensaiou chamar toda a esquerda de porcalhona. "Ponha-se daqui para fora", teve de ouvir da anfitriã. "Está me ofendendo em minha própria casa." Ela também rompeu com César Queirós Benjamin, ex-guerrilheiro e fundador do PT que se converteu no crítico mais ácido de Lula. Afastou-se também do professor Luciano Coutinho, por divergências na avaliação da atual política econômica. "Ela continua apaixonada pelas grandes causas, essa é sua grande virtude: a paixão", minimiza Coutinho.

Certa vez o jornalista americano Gay Talese, pioneiro das reportagens romanceadas, escreveu que Frank Sinatra com gripe era como Picasso sem pintura e Ferrari sem combustível, só que pior. Conceição sem causa é como Sinatra sem voz. Aliados e adversários se acostumaram a ter na sua opinião uma referência. Algumas vezes a professora errou feio, em outras acertou na mosca, mas sempre em alto e bom som. Em dezembro de 1989, três meses antes da posse de Fernando Collor, advertiu para o fato de que o presidente eleito se preparava para governar sem apoio das massas populares ou dos empresários. "Assim vai levar um impeachment", avisou. Foi coisa de pitonisa. Mas, quando em marco de 1994, lançou-se a base do Plano Real, com a criação da URV, Conceição perdeu-se. "Esse plano não estabiliza nada", disparou. "A proposta de inercializar a inflação já furou." Estava errada, como se viu. Neste momento, as lágrimas de Conceição representam a frustração dos economistas que apostaram a vida em um projeto de desenvolvimento capitaneado pelo Estado – de preferência com a esquerda à frente do processo. "Minha única alegria é saber que o Celso Furtado morreu antes de ver isso", tem repetido a portuguesa que chegou ao Brasil em 1954. "Ela está sofrendo por inteiro, está sentindo essa crise com as tripas", conta a amiga Rosa Freire de Aguiar, viúva de Furtado. O drama da professora é que ela ainda não conseguiu processar a culpa de cada um nessa crise. Analisar a conduta de Delúbio Soares, Silvio Pereira e Marcos Valério, está fácil. Ela se recusa a pronunciar seus nomes e só se refere a eles como "vilões". Mas Conceição cai em prantos quando tem que falar de seus amigos Lula e José Dirceu. Para ela, Lula foi um inocente, "sacrificado no meio dos vilões". Já Dirceu, foi um "inocente útil". Quando provocada a falar sobre Antônio Palocci, ela muda de assunto. Diz apenas que a corrupção está associada a essa política econômica errada, "reducionista", como define. "Se o País estivesse crescendo, a corrupção seria menor", imagina. O secretário do Tesouro Joaquim Levy, um técnico que nada tem a ver com a crise, está levando a culpa. Conceição só se refere a ele como "aquele filho de Washington". "O superávit primário não vai levar o País a lugar nenhum", queixa-se. "A corrupção é fruto dessa falta de perspectiva".

O apartamento onde Conceição se recolheu fica a meio caminho do Cristo Redentor. Tem 180 m² de chão e pelo menos 300 m² de estantes nas paredes. Há livros (lidos) na sala, no corredor, nos três quartos e até no banheiro. A professora acorda e devora quatro jornais diários. Corre para a hidroterapia na academia Mira Sports, na rua das Laranjeiras – única forma de aliviar as dores na coluna, cada vez mais agudas – e volta correndo para a televisão, a tempo de assistir a sessão de alguma CPI. Está fisgada pela CPI do Mensalão – antes era a dos Correios. Viúva, mãe de dois filhos, duas vezes avó, vive apenas com uma empregada. Seu escritório, tocado pelo assessor Alexandre Silva, fica ao lado do edifício onde mora. Ela pouco aparece por lá. Seu principal interlocutor nestes dias é o professor Luiz Gonzaga Beluzzo. Conversam por telefone no mínimo duas vezes por semana. Beluzzo, que está pessoalmente furioso com Lula e o PT, tem sido cuidadoso em suas análises sobre a crise interna. Procura animar Conceição discutindo economia internacional. Ele é seu fio-terra. Neste momento, estão em pleno debate acadêmico sobre o último texto de Alan Greenspan, publicado no periódico American Economic Review. Greenspan escreve sobre a dificuldade de se usar modelos rígidos de política monetária em economias que se transformam com muita rapidez. "Conceição fica exultante quando exerce sua postura crítica", conta Beluzzo. Mercadante tem tentado a mesma tática para instigá-la. Ele é hoje o discípulo predileto da velha professora. Ela o tem alertado sobre os riscos de uma queda abruta das taxas juros no Brasil depois de quase um ano na estratosfera. "Foi uma barbeiragem", ataca Conceição. Mercante, por sua vez, encomendou à professora um estudo sobre a bolha de crescimento chinesa, para que ele pudesse entender melhor a relação cambial entre a China e os Estados Unidos. Ela já começou suas leituras. Dias atrás, a amiga Rosa Freire tentou convencê-la a dar um tempo, relaxar e visitar Portugal. "Não consigo, está complicado", respondeu a economista. Depois sorriu. Revelou que está pensando em ir ao Chile. Conceição se lembra que em meados de 1973, às vésperas do golpe militar que derrubaria o presidente Salvador Allende em 11 de setembro, a esquerda chilena marchou com uma faixa que entraria para a história. "Este es un gobierno de mierda, pero es mi gobierno, mierda!", dizia. Na noite de quarta-feira, Conceição enxugou as lágrimas e foi a um debate do PT repetir a frase apaixonada e teimosa, como ela.

Arquivo do blog