Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, agosto 03, 2005

PAULO RABELLO DE CASTRO O novo biscoito chinês

FOLHA DE S PAULO



A cultura chinesa revela especial apreço pela leitura da sorte de cada um. É o cultivo do mistério e da arte de tentar desvendá-lo. Os algarismos ganham significado especial, sendo o oito considerado número bafejado por bons presságios. Ponha sua casa voltada para o rumo certo se quiser ter proteção e felicidade no lar.
Os chineses parecem ter inventado também a política cambial da sorte na economia. Durante uma década, permaneceram atrelados, numa paridade fixa, ao dólar. Esse regime de câmbio fixo, administrado para garantir estabilidade de preços, enquanto a China avançava, em ganhos de produtividade, sobre os mercados ocidentais, teve, naturalmente, uma boa dose de mágica chinesa por meio dos controles quantitativos de suas importações e de subsídios cruzados às exportações do novo gigante do comércio mundial.
A China evitou os empréstimos internacionais cuidando de não endividar diretamente o setor público, embora seu sistema financeiro doméstico acumule um volume quase catastrófico de dívidas privadas e estatais impagáveis, algo na faixa de US$ 400 bilhões a US$ 500 bilhões, que vão sendo, aos poucos, deglutidos pelos bancos locais.
A política econômica, intervencionista com as sutilezas chinesas, é desenhada para alcançar agressivas metas de crescimento previstas nos planos nacionais e das regiões, algo que tem sido ultrapassado por larga margem. A absorção da imensa pobreza, ainda enorme, constitui um milagre do capitalismo administrado "por vontade única". O resultado social é extraordinário, fantástico pelas dimensões do desafio e das metas alcançadas. A contabilidade social final desse processo ainda não foi feita. Quando aberta, mostrará elevados custos escondidos (alguns já visíveis e gritantes) de destruição do ambiente e da eliminação de liberdades individuais -inclusive de eleger o número de filhos que se quer ter.
O novo biscoito chinês da sorte é a sua política cambial, anunciada na semana passada. Ninguém entendeu direito a minivalorização do yuan, a moeda chinesa, em cerca de apenas 2%, cercada por declarações inteligentemente contraditórias das autoridades monetárias locais. É óbvio que a valorização mínima da moeda chinesa é uma mera reação ao autoritarismo americano ao ameaçar-lhes impor tarifas retaliatórias. Os chineses, com a sua valorização "de mentirinha", ganharam tempo na mesa de negociações.
O objetivo chinês continua sendo o que sempre foi nas últimas décadas: preparar seu povo para ser líder no século 21, acumulando riquezas materiais e incorporando conhecimentos vitais pela educação e por meio do desenvolvimento científico e tecnológico. Os saldos comerciais e na balança corrente chinesa representam também uma ferramenta de poder sobre os americanos, na medida em que tais ganhos do comércio exterior da China são reemprestados aos EUA sob a forma de compra de ativos -primeiro, os títulos da dívida federal de Tio Sam, e agora, também, controle de empresas privadas daquele país. A China torna-se, assim, um biscoito "da sorte" para os EUA e para o mundo, por tabela. Ela mesma prepara os biscoitinhos, com os papéis da sorte dentro de cada um, e escreve lá dentro o que bem entender, inclusive a sua nova política cambial, o que deve ter provocado boas risadas entre as autoridades da China, ao mirar a cara de perplexidade do resto do mundo ante o anúncio da sua incompreensível política cambial.
A China pratica um monetarismo para o crescimento sustentado. Com todos os seus eventuais perigos e defeitos embutidos, o modelo chinês contrasta vivamente com o servilismo bovino do regime monetário brasileiro. Serve como alerta desse equívoco -depois do leite derramado- a entrevista do colega John Williamson ao "Globo" no último sábado. Esse é o economista a quem se atribui a receita do "Consenso de Washington", conjunto de políticas supostamente reformistas, adotado pelo Brasil, entre outros. Williamson faz o seu mea culpa sobre os sofríveis resultados da receita no Brasil, dando nova dica aos nativos: menos "liberdade" no mercado cambial e menos juros altos, se possível achando a porta de saída da estagnação econômica em que nos metemos. John Snow, secretário do Tesouro americano, também veio ao Brasil dizer-se intrigado com os nossos "juros altos"...
Com toda certeza, os brasileiros temos apanhado apenas os biscoitinhos chineses da mala suerte.

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