O ex-chefe da Casa Civil da Presidência da República José Dirceu comparece hoje ao Conselho de Ética da Câmara na qualidade de testemunha, mas com toda a pinta de réu. Há poucos dias, demonstrava uma segurança até estranha diante da avalanche de denúncias que desabava sobre o partido e o governo que um dia já foram seus. E garantia que não havia nada que o ligasse aos delitos denunciados, a não ser a acusação "de um desclassificado".
Hoje, esse "desclassificado" estará na primeira fila do Conselho, e tudo pode acontecer. É, como já está sendo conhecido em Brasília, o Dia D (de Dirceu) .
Nos últimos dias, como tem acontecido regularmente desde que se iniciou essa crise, "Sua Excelência os fatos", na expressão de Ulysses Guimarães, vem confirmando as acusações do "desclassificado" Roberto Jefferson. Embora a diretora da SMP&B Simone Vasconcellos não tenha confirmado na Polícia Federal o que dissera aos jornais, que era mesmo o pau-para-toda-obra de Dirceu, Bob Marques, a pessoa autorizada a sacar R$ 50 mil na boca do caixa do Banco Rural em São Paulo, permanece a suspeita.
A intimidade de Dirceu com o lobista Marcos Valério era tanta que ele conseguiu não apenas um emprego para uma ex-mulher no mesmo Banco Rural, como um financiamento no outro "banco amigo", o BMG, para que ela comprasse um imóvel em São Paulo. Ou é crível que Dirceu só tenha tomado conhecimento de todas essas transações ontem, depois que a denúncia foi publicada?
Com tantas evidências, por que não acreditar no que disse Renilda, a mulher de verdade? Segundo ela, Dirceu negociou os empréstimos do PT pessoalmente com o Banco Rural. Ao mesmo tempo que parece acuado pelas acusações, José Dirceu mantém uma relação ambígua com o Palácio do Planalto e com seu próprio partido. O que está sendo feito dentro do PT pelo novo presidente Tarso Genro é, na verdade, preparar o caminho para a saída de Dirceu do comando informal que exercia através de prepostos como Delúbio e Sílvio Pereira, na qualidade de presidente licenciado.
Ele não tem condições de voltar a comandar o partido, mas é o que insinua como objetivo ao dizer a todo momento que está sendo julgado politicamente, como na última nota que soltou. Essa nota, com críticas duras a setores da imprensa e à oposição, foi entendida como uma preparação para uma provável renúncia futura, uma jogada para tentar voltar na próxima legislatura como deputado federal, comandando os militantes petistas.
Esse movimento perdeu conteúdo político ontem com a primeira renúncia de mandato de um dos líderes do mensalão, o presidente do PL Valdemar Costa Neto. O que poderia ser um gesto político passou a ser tão-somente uma confissão de culpa.
Tarso Genro está tentando negociar a dissolução do Campo Majoritário, dando uma solução tão radical para que o PT seja refundado quanto a de José Dirceu em 2000, quando instituiu a grande inovação da eleição direta do presidente do partido, quebrando assim o voto proporcional dentro do PT, que dava representatividade às diversas tendências que o compõem. Essas tendências continuam representadas no diretório nacional, mas já não têm força para negociar a presidência, escolhida pelos cerca de 800 mil filiados.
O que o Genro pretende é impedir a existência de tendências, o calcanhar de Aquiles da unidade partidária. Quando Lula foi eleito, com a orientação da campanha e das alianças partidárias dominadas pelo Campo Majoritário, todos os grupos do partidos foram convidados a fazer parte do governo, numa tentativa de unificação. Mas logo o pragmatismo da nova administração, especialmente na condução da política econômica, impediu a unidade.
Nesse processo que se desenrola, Lula finge se distanciar do PT, ao mesmo tempo em que mantém cada vez maior interferência no partido pelo qual terá que ser candidato, se tiver condições políticas de concorrer à reeleição. A lama que pegou no PT vai pegar irremediavelmente em Lula na campanha. Não adianta Lula tentar se distanciar do PT, estão umbilicalmente unidos, mas a aparência de distanciamento é a única saída política para tentar blindar o presidente.
Ele fez uma intervenção direta no partido, colocando em sua direção três ministros — Tarso Genro, Humberto Costa e Berzoini — e pode esperar agora uma "limpeza ética". A dificuldade para expulsar Delúbio Soares, no entanto, mostra que não é fácil fazer essa limpeza, e que a turma do José Dirceu continua forte.
O mesmo paradoxo que vive Lula vive José Dirceu. Ao mesmo tempo em que se sente traído pelo Palácio do Planalto, recebe ajuda do Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, do Coordenador Político do Governo, Jaques Wagner, se utiliza da Abin, e até mesmo do advogado Fernando Neves, presidente do Conselho de Ética Pública, que não deveria ter nenhuma ligação com o governo. Ele disse em nota que faz "consultoria sobre aspectos da legislação eleitoral e partidária" para o deputado José Dirceu, que por haver deixado o cargo de chefe da Casa Civil, "não é mais autoridade vinculada à Comissão de Ética Pública".
Há um equívoco aqui — e como se fazem de ingênuos todos os participantes dessa trama: o deputado Dirceu vai hoje ao Conselho de Ética para testemunhar fatos que viveu como ministro e, portanto, o presidente do Conselho de Ética não poderia ter-lhe dado conselhos técnicos. O futuro da crise dependerá muito do que disser José Dirceu hoje — confirmará, por exemplo, que tudo o que fez tinha o conhecimento do presidente? — e do depoimento da diretora Simone Vasconcellos na CPI dos Correios amanhã.
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Na coluna de sábado, errei ao traduzir Attorney-General por Advogado-Geral da União. Na verdade John Mitchell foi Ministro da Justiça de Nixon.
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