O GLOBO
Faz algum tempo, assisti, dando mínimos e humildes palpites, a uma reunião de moradores de uma grande favela do Rio com pessoas do asfalto. Discutiu-se como líderes favelados deveriam agir ou reagir em relação aos traficantes locais.
Para quase todos, algum tipo de convívio com a bandidagem era praticamente inevitável. Como fazer frente, de peito aberto e sem poder de fogo, a bandidos ferozes numa área em que a presença da PM podia ser freqüente, mas jamais permanente?
Num momento em que se discutiam falhas dos agentes do Estado, alguém, num aparte, comentou o absurdo que era, a seu ver, a condenação do cantor Belo por associação com o tráfico. Ninguém discordou abertamente. Estranhei: tanto quanto sabia, a intimidade do artista com um certo traficante, com quem chegara a discutir a compra de armas, ficara provada acima de qualquer dúvida. Mas, para muitos favelados, sua condenação seria exagerada exibição de eficiência policial às custas de um bom rapaz que nada fizera de realmente criminoso.
Ali estavam pessoas honradas, preocupadas com a paz para suas famílias. Não batiam palmas para traficante algum — mas não viam como impedir algum relacionamento com bandidos. Principalmente se a diplomacia dos líderes comunitários evitasse, tanto quanto possível, a violência contra moradores.
Trata-se de uma estratégia de sobrevivência, e nenhuma melhor foi oferecida até hoje. O cantor Belo, nesse contexto, teria apenas exagerado na intimidade.
A dura tarefa dos políticos honestos que atuam em favelas (ainda há alguns) é suar a camisa em duas frentes de combate óbvias — cobrando ação eficaz do Estado e contribuindo para a formação de lideranças locais honestas e hábeis, mas condenadas a conviver com o traficante.
Existe aí uma fronteira difícil de definir: até onde vai a coexistência relutante? Onde começam as relações amistosas? Principalmente se essas relações incluem troca de favores? Nesse quadro, o ídolo popular que exagera na intimidade com o bandido dá mau exemplo.
As agora reveladas gravações de trocas de gentilezas entre ídolos populares e chefes do tráfico são gols contra o time do bem. Não importa que os craques não negociem nem consumam os produtos de seus interlocutores.
A simples cordialidade num telefonema ou a aceitação da oferta de favores especiais (como seria "dar um jeito" num assaltante que teria atacado um amigo de um ídolo popular) já é comportamento social inaceitável.
Ser ídolo com os pés, as mãos ou a voz produz status e popularidade — mas implica responsabilidades civis. Acabará pagando alto preço, a começar pela perda da popularidade, quem driblar os deveres que acompanham a fama.
Entrevista:O Estado inteligente
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