Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, agosto 22, 2005

Luiz Carlos Mendonça de Barros Plano Real cumpriu meta de estabilização, mas é preciso crescer



Entrevista ao Valor

Sergio Lamucci

Para o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, o Plano Real cumpriu enfim seu objetivo de estabilização, 11 anos após seu início. Com a inflação sob controle, amparado por contas externas sólidas, situação fiscal mais equilibrada e uma maior abertura da economia, a principal meta do país não deve ser mais a estabilidade, mas sim o crescimento, avalia ele. Segundo Mendonça de Barros, o primeiro passo é resolver duas grandes distorções na economia brasileira: o nível dos juros reais e a carga tributária elevada.

Para reduzir os juros, será fundamental alterar a forma como o Banco Central opera a política monetária, diz ele. Hoje, o BC define no overnight um juro real elevadíssimo, que deveria ser a taxa dos títulos públicos mais longos. Não há, desse modo, uma estrutura a termo da taxa de juros. Para mudar esse quadro, é indispensável uma atuação conjunta do BC e do Tesouro. Ele reconhece que a tarefa não será fácil, mas é fundamental para que o país tenha juros civilizados. Taxas reais de 13%, lembra ele, ainda acentuaram a valorização do câmbio num momento de fluxo comercial abundante.

A avaliação de que o Real cumpriu seu papel de estabilização não é unanimidade entre os economistas. Para um dos pais do plano, o ex-presidente do BC Pérsio Arida, o Real só terá atingido seus objetivos quando os preços estiverem baixos num cenário de câmbio flutuante e juros em níveis internacionais. Como se sabe, o Brasil atende apenas a primeira dessas condições. "Acho que isso é preciosismo do Pérsio", responde Mendonça de Barros. "Com o controle da inflação, você tem as condições e o dever de mexer na questão dos juros."

Ele insiste que é possível controlar a inflação mesmo com juros bem mais baixos e um câmbio mais desvalorizado. O ex-ministro avalia que a redução da Selic não provocará uma alta tão forte do câmbio, devido ao fluxo comercial. E, se a demanda ficar muito aquecida, é possível aumentar o superávit primário, diz.

Ele vê semelhanças do cenário atual com a situação vivida no fim dos anos 60. Depois da estabilização promovida pela dupla Roberto Campos-Octávio Bulhões, havia o temor da volta do descontrole inflacionário. "Mas isso não ocorreu. O Delfim Netto soltou as amarras da economia, que cresceu 5%, 6%, 7%, 8%. A inflação só foi aparecer depois devido ao choque de petróleo."

Para Mendonça de Barros, a redução dos juros reais também aliviaria as contas fiscais, abrindo espaço para a diminuição da carga tributária. Mas um sistema de impostos menos pesado também vai requerer medidas que permitam corte de gastos de custeio, afirma ele.

Toda essa tarefa, porém, caberá ao próximo governo, avalia ele. Para o ex-ministro, a administração Lula não tem credibilidade nem autoridade para promover as mudanças requeridas, e nem a convicção de que elas são necessárias. Tucano histórico, ele esboça, nesta entrevista ao Valor, as linhas gerais da política econômica de um novo governo. Para ele, o prefeito José Serra ou o governador Geraldo Alckmin, os dois do PSDB, têm grandes chances de vencer as eleições de 2006 e conduzir um programa de governo desenvolvimentista, que exige um compromisso ainda maior com a inserção global, por meio do aumento das exportações e do saldo comercial. Um país que tem renda baixa, afirma, tem que apostar no comércio exterior para crescer com a renda dos outros. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: A inflação está controlada, as contas externas estão sólidas e as contas fiscais, razoáveis. Mas os juros estão altos e o país cresce pouco. Como o sr. analisa esse cenário?

Luiz Carlos Mendonça de Barros: O Plano Real chegou ao seu objetivo, porque trouxe a inflação para um nível razoável e a estabilizou. Ele cumpriu sua função como plano de estabilização. Quais são os três fatores mais importantes para você ter uma inflação normal? O primeiro é a parte fiscal. Hoje, o governo não gasta muito acima do que arrecada, e com isso não gera liquidez para a economia. O segundo é ter uma taxa de câmbio relativamente estável. Você não pode ter grandes oscilações, porque o câmbio forma preços importantes. O fluxo comercial significativo atenua a volatilidade no câmbio. O terceiro é o processo de arbitragem que a economia aberta permite.

Valor: Como isso funciona?

Mendonça de Barros: Eu vou dar um exemplo recente, de uma pessoa que foi comprar um carro importado e queria um com um ano de uso. Ele encontrou e resolveu perguntar quanto o mesmo carro custaria se fosse novo. Descobriu que o zero estava mais barato. Por quê? O motivo é simples. O sujeito que vende o carro usado racionava em reais. Ele comprou o carro por R$ 60 mil, e queria vender por um preço parecido. Quem vende o carro novo opera em dólar. Como o dólar caiu muito, o valor em reais do carro novo ficou abaixo do valor em reais do carro velho. Com essas três condições, o Plano Real cumpriu sua função de estabilização. A formação de preços na economia ocorre de um modo normal. Uma outra forma de medir o sucesso é que, neste ano, os IGPs vão ficar abaixo do IPCA. Com isso, a indexação no ano que vem é menor do que a meta de inflação. O duro é o que ocorreu neste ano. Os IGPs, que corrigem boa parte das tarifas públicas, ficaram em 12% em 2004, bem acima dos 5,1% da meta. No ano que vem, nós não temos mais esse problema. O IGP deve fechar o ano em 2,5% a 3%.

Valor: Pérsio Arida discorda da avaliação de que o Plano Real cumpriu sua função de estabilização. Para ele, isso ocorreria se o Brasil tivesse preços baixos com câmbio flutuante e juros em níveis internacionais. Apenas a primeira dessas condições foi atingida.

Com o controle da inflação, você tem o dever e as condições de mexer na questão dos juros

Mendonça de Barros: Acho que isso é preciosismo do Pérsio. Com o controle da inflação, você tem o dever e as condições de mexer na questão dos juros. Essa é uma das grandes distorções da economia brasileira, ao lado da carga tributária elevada. Um novo presidente deve entender que a estabilização terminou, mas que há ainda essas distorções muito sérias. O objetivo de um novo presidente deve ser o crescimento, é evidente que com estabilidade. O Real cumpriu sua função de estabilização. As metas terão de ser vinculadas ao crescimento.

Valor: Como resolver o nó do juro?

Mendonça de Barros: É fundamental mudar a forma como o BC opera a política monetária, saindo do overnight e construindo uma estrutura a termo da taxa de juros, para que haja juros mais baixos na parte mais curta da curva. Hoje, o BC opera no overnight os juros reais que deveriam estar na ponta mais longa da curva. O ideal seria ter algo como juros reais de 4% no overnight e de 10% nos títulos de dois, três ou quatro anos. Como o BC não consegue, faz no overnight os juros reais que deveriam estar na parte longa da curva. Ao fazer isso, impede a formação de uma estrutura a termo da taxa de juros. Para mudar isso, vai ser necessário uma integração muito grande entre o BC e o Tesouro. Por algum tempo, o Tesouro vai ter que emitir títulos em faixas mais caras que outras, mas para poder ter papéis de 180 dias, um ano, dois anos, cinco anos, dez anos. Mas não é um processo simples. Ao manter isso por 20 anos, você viciou todo mundo nesse tipo de coisa. Isso fazia sentido na época da inflação alta, não faz mais sentido hoje. O surgimento da indexação financeira ocorreu quando eu, Pérsio Arida e André Lara Resende éramos diretores do BC. Como eu participei da montagem desse sistema, sei que as condições que levaram à sua criação não existem mais.

Valor: O que mais atrapalha a queda dos juros?

Mendonça de Barros: Esse processo é o grosso da distorção financeira no país, mas foi agravado por um regime de metas de inflação muito rígido, com metas muito ambiciosas. O BC segue uma meta que não exclui preços administrados e tem que cumpri-la no ano calendário, que não tem nada a ver com o período econômico. O tamanho da dívida pública também atrapalha.

Valor: A inflação está sob controle, mas à custa de juros elevados e câmbio valorizado. Se os juros caírem e o câmbio se desvalorizar, não vai haver um custo inflacionário?

Mendonça de Barros: Com o saldo comercial significativo, o dólar não vai subir muito. A volatilidade hoje é muito menor, porque está sobrando dólares devido às exportações. O fluxo comercial tenderia a atenuar a saída do fluxo financeiro. E, se houver algum descompasso, porque esses movimentos não são sincronizados, o Banco Central tem reservas para fazer frente a esse tipo de coisa. A estimativa é que haja US$ 5 bilhões ou US$ 6 bilhões de dinheiro de fora especulando aqui dentro. Mas não é porque existe o risco de que haja um soluço de inflação que eu vou manter a economia com juros reais de 13%. Isso é o que está errado. Há outros países que trabalham com juros mais baixos e a inflação não aparece.

Valor: Mas os desenvolvimentistas como o sr. não minimizam o impacto inflacionário da queda dos juros e da desvalorização do câmbio?

Mendonça de Barros: Mas há instrumentos para fazer essa transição, como o aumento do superávit primário. Há instrumentos fiscais e de crédito para poder operar essa transição. É possível fazer um controle quantitativo de crédito. O que não pode é não fazer nada devido ao temor de que há riscos se os juros caírem.. Eu estou cada vez convencido de que nós estamos no dilema vivido pelo Roberto Campos e Delfim Netto, no fim dos anos 60. Eu me lembro que, quando Delfim começou a soltar a economia, Roberto Campos dizia: a inflação vai voltar, nós vamos perder a estabilidade que nós conseguimos. E isso não ocorreu. O Delfim Netto soltou as amarras da economia, que cresceu 5%, 6%, 7%, 8%, e a inflação só foi aparecer depois devido ao choque de petróleo. Mas é necessário gerir a política monetária e a política fiscal de uma maneira que a transição seja feita com a menor volatilidade possível.

Valor: O câmbio está fora do lugar? Mesmo com o dólar na casa de R$ 2,30, o saldo comercial deve ficar acima US$ 40 bilhões neste ano.

Mendonça de Barros: A questão é que o mundo está passando por mudanças significativas, inclusive em termos de preços relativos. Quem é que podia imaginar que o minério de ferro, que há seis, sete, oito anos não valia nada, pudesse ter um aumento de 70%, como ocorreu neste ano? Isso ocorreu com uma série de outros produtos. Mas veja o caso da Embraer, que exporta manufatura. Ela teve uma queda no faturamento de quase 20%. O câmbio está afetando as empresas exportadoras. Mas essas empresas vivem para vender para fora do país. O que está ocorrendo é que a margem de lucro dessas empresas está caindo. O câmbio tem que voltar ao normal. Foi a combinação de uma condição de solvência extraordinária, com superávit em conta corrente de 2% do PIB, e de um juro absolutamente fora de compasso que gerou a valorização do câmbio. Isso só não foi pior porque houve um fluxo de saída, pois quem tinha dívida ou recursos para remeter ao exterior mandou dinheiro para fora. Se não, o dólar estaria na casa de R$ 2,10. Essa taxa não é estável no longo prazo. Acho que, à medida que você reduzir os juros e a arbitragem externa terminar, nós teremos um câmbio mais razoável.

Valor: Quais seriam as outras bases de um programa voltado para o crescimento?

No meu cenário, Lula fica até o fim do mandato e é derrotado nas eleições. Isso faria um bem terrível para o Brasil

Mendonça de Barros: Acho que é fundamental o próximo governo reafirmar o compromisso com a inserção do Brasil no mundo global. Por um motivo muito simples: esse Brasil que se abre a partir de 2007, com estabilidade de preços, com uma situação fiscal razoável para boa e um equilíbrio externo bastante sólido, é um país pobre em termos de renda, o que limita o crescimento. A saída é fazer que nós estamos fazendo, mas aumentando ainda mais o comércio exterior. No começo do Plano Real, o fluxo de comércio do Brasil, somando exportações e importações era de 15% do PIB, e era deficitário. Se nós aceitarmos a decretação do fim do Plano Real no ano que vem, nós teremos um fluxo comercial de 25% a 26% do PIB, e um saldo comercial de 10% do PIB. Isso é um desempenho extraordinário em termos de abertura comercial. Acho que o primeiro compromisso é o de aprofundar isso. É um pouco o caminho dos países asiáticos. Eram países de renda muito baixa, que perceberam que a melhor forma de crescer era com a renda do outro. Quando eu tenho um saldo comercial expressivo, trabalho com a renda do outro.

Valor: Por que o sr. diz que todas essas medidas vão ser feitas pelo próximo governo? O governo atual não pode fazê-las?

Mendonça de Barros: Não vai fazer, em primeiro lugar, porque eles não acham que se deva fazer. Não há convicção sobre isso. Segundo, esse governo acabou. Não tem credibilidade ou autoridade. Não é uma questão simples, ela envolve a coordenação do Banco Central, do Tesouro, e exige uma complementaridade da política fiscal.

Valor: Como se reduz a carga tributária?

Mendonça de Barros: Se você conseguir reduzir os juros tem um impacto relativamente grande sobre as contas fiscais. Mas é necessário uma mudança do lado das despesas, que mexa nos gastos de custeio.

Valor: É importante aumentar investimento público?

Mendonça de Barros: Acho que há um espaço do governo que não vai dar tempo de passar para o setor privado. Mas uma das coisas importantes no próximo governo é retomar as privatizações. É necessário corrigir alguns erros que ficaram no passado, como o setor elétrico, mas é importante ir um pouco à frente. Na questão de estradas, o sucesso de São Paulo é gritante. Na área das rodovias federais, há um espaço imenso para privatizações.

Valor: Com redução dos juros reais e mudança da composição do gasto público, haverá espaço para redução de carga tributária?

Mendonça de Barros: Eu não tenho dúvidas. Acho que o governo deveria ter até uma meta de redução dos atuais 35% do PIB para a casa de 25%. Mas isso ocorreria ao longo do tempo, porque há rigidez do gasto e é necessário fazer uma série de reformas., que inclui analisar a Previdência. Mas o importante é que o próximo governo terá metas diferentes, vinculadas ao crescimento.

Valor: Qual é o cenário do sr. para as eleições de 2006?

Mendonça de Barros: O meu cenário, e que eu gostaria que se concretizasse, é que Lula fica até o fim do mandato e é derrotado nas eleições. Acho que isso faria um bem terrível para o Brasil. Houve uma experiência do PT, que era necessário purgar, porque se falou nela por muito tempo. A experiência foi um desastre, e graças ao Roberto Jefferson foi um desastre menor do que seria, se nós não soubéssemos o que ocorria dentro do PT e do governo. Além disso, nós tivemos a felicidade, devido ao bom senso do presidente, de não interferir na parte econômica.

Valor: O novo presidente será um tucano desenvolvimentista?

Mendonça de Barros: Pelo que eu tenho visto, o PSDB fez uma autocrítica em relação ao monetarismo extremado do segundo mandato, embora ache que o ministro que cuida das finanças não possa ser um desenvolvimentista apaixonado. Mas é necessário que, nas outras áreas do governo, haja liberdade para desenvolver os seus programas. Visto de hoje, os dois candidatos com mais possibilidade são José Serra e Geraldo Alckmin. Eu tenho certeza que eles entendem essa oportunidade extraordinária que se abre para o próximo presidente. E eles não vão perdê-la.

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