"O Islã prega a paz"
O líder da comunidade muçulmana diz que a
ação dos fanáticos fundamentalistas distorce
a imagem da religião no Ocidente
José Eduardo Barella
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O título de xeque e o cargo de presidente do Conselho Superior para Assuntos Islâmicos no Brasil dão ao sul-mato-grossense Ali Mohamed Abdouni, de 41 anos, as credenciais para falar em nome do 1,5 milhão de brasileiros que seguem a religião fundada por Maomé no século VII. No Brasil, apenas o conselho que ele preside tem o direito de emitir fatwas, os decretos que estabelecem a regra islâmica para uma questão. Desde os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, cometidos em nome do Islã, sua grande preocupação tem sido a de explicar aos não-muçulmanos que a "verdadeira natureza" de sua religião é ser pacífica e tolerante. Filho de imigrantes libaneses, Abdouni passou a infância no Líbano e a adolescência no Brasil. O fascínio pelo Corão, o livro que os muçulmanos acreditam ser a palavra de Alá revelada ao profeta Maomé, levou-o a estudar teologia islâmica durante seis anos em Medina, na Arábia Saudita. Abdouni é casado e pai de cinco filhos, três meninas e dois meninos com idade entre 2 e 11 anos.
Veja – O que senhor diz aos fiéis e aos amigos não-islâmicos de sua comunidade quando ocorre um atentado como o de Londres, cuja autoria foi atribuída a seguidores do Islã?
Abdouni – Nós condenamos todos os tipos de atentados realizados contra inocentes, já que o Islã deixa claras todas as leis em estado de guerra e em estado de paz. Portanto, quando alguém comete um atentado como o de Londres, nós repudiamos e também instruímos nossa comunidade sobre os fatos. Muitas vezes não sabemos se realmente os autores são muçulmanos, mas, se forem, somos contra da mesma maneira. Cabe aqui um alerta. É um erro generalizar e transformar um ato terrorista perpetrado por um grupo de pessoas em algo que difame a imagem de toda uma nação ou de uma religião. A palavra Islã significa paz, justiça. Ou, em outra interpretação, submissão total à vontade de Deus. Se uma pessoa se submete voluntariamente à vontade de Deus, ela jamais terá envolvimento com o terrorismo.
Veja – Algumas pessoas acreditam que o Islã é em si mesmo uma religião que predispõe as pessoas a atos violentos. Até que ponto isso é verdade?
Abdouni – Isso não é verdade. O Corão, o livro sagrado do Islã, prega a paz. A guerra só pode ser uma forma de um muçulmano se defender, ainda assim, dentro de seu território. Como alguns grupos islâmicos estão praticando agora atos terroristas, a religião muçulmana é vista no Ocidente como violenta. Ora, o Islã tem catorze séculos de existência e uma história marcada pela tolerância. Se o Brasil, a Espanha e a América Latina são hoje predominantemente católicos, isso se deve à tolerância que prevaleceu nos oito séculos em que o império muçulmano dominou a Andaluzia, na Península Ibérica. Naquele período, o idioma, os costumes e as tradições religiosas locais foram cuidadosamente preservados. O Islã prega uma mensagem de paz e harmonia, e não de guerra e terrorismo.
Veja – Surpreende que os religiosos muçulmanos tenham condenado à morte um escritor acusado de blasfêmia, mas nenhum tenha até hoje emitido uma condenação contra Osama bin Laden. Por que é assim?
Abdouni – Os muçulmanos deploram o terrorismo e, quando for provado que Osama bin Laden organizou os atentados de 11 de setembro, ele também será condenado pelo Islã. O responsável deve ser procurado, processado, julgado e punido. Seja quem for. Seja de que religião for.
Veja – A separação entre a Igreja e o Estado é uma das conquistas mais preciosas da civilização ocidental. Por isso, os ocidentais se surpreendem que não seja assim no Islã. É possível existir separação entre o Estado e a mesquita?
Abdouni – A religião islâmica é o conjunto de leis criado por Deus para ser seguido pelos homens. Ela permite que nós possamos respeitar o próximo, preservar o universo no qual vivemos e proteger nossos espíritos e mentes para alcançar a felicidade. A vida do ser humano, porém, não se restringe ao tempo em que ele passa no templo religioso. A lei islâmica deve acompanhá-lo em todos os momentos e lugares para impedir que ele cometa erros. Por isso, o Islã também se define como um sistema político, econômico, social, educacional, jurídico e familiar. É um código de vida completo, de fonte divina, que não pode ser dividido. As regras que vão definir todos esses sistemas foram estabelecidas por Deus, e não pelo homem. Como Deus é perfeito e o homem não, a maior conquista dos muçulmanos é que a religião possa reger todas as esferas de sua vida.
Veja – O Brasil é a terra do Carnaval, dos biquínis ousados e do sincretismo religioso. Como é ser muçulmano em um país com tal liberdade de costumes?
Abdouni – No Brasil, como em qualquer país do mundo, ser muçulmano implica desafios. As pessoas constantemente deparam com testes a sua fé. Como disse Deus no Corão, a religião não deve ser imposta. Ela deve ser fruto de uma convicção, de análise e aceitação racional. Quando isso acontece, não importa o lugar onde um fiel se encontre, ele seguirá a religião e seus preceitos com tranqüilidade. Além do mais, assim como os muçulmanos, uma grande parte dos brasileiros não aceita o Carnaval nem o biquíni. Essa é uma escolha livre. Quanto ao sincretismo, a religião islâmica estabelece que os muçulmanos devem respeitar todo tipo de religiosidade. Ela nos dá o direito de discordar de outras crenças, mas nos obriga a respeitá-las.
Veja – Durante séculos, sábios do Islã discutiram se um muçulmano podia viver num país cristão. Os muçulmanos realmente se sentem desconfortáveis quando são minoria?
Abdouni – Não há desconforto. Por duas razões. Primeiro, porque a religião islâmica é universal, ou seja, nada impede o muçulmano de praticá-la em qualquer lugar. Segundo, porque os muçulmanos estão acostumados a viver onde não são maioria. Nos primórdios da religião, o próprio profeta Maomé incentivou que muçulmanos viajassem para lugares distantes para que aprendessem com seguidores de outras religiões e também lhes ensinassem a mensagem do Islã. O que os sábios do passado discutiam é se uma minoria muçulmana poderia permanecer em um país que não respeitasse sua religião. Essa preocupação não existe hoje porque felizmente os direitos dos muçulmanos são preservados, tanto no Brasil quanto na América do Norte e na Europa.
Veja – O Islã está interessado em conquistar fiéis entre os brasileiros cristãos?
Abdouni – O Islã é a religião que mais cresce no mundo. Cresce principalmente no Ocidente. Em vários países da Europa, o islamismo já é a segunda religião. Nos Estados Unidos, existem 8 milhões de seguidores. Aqui no Brasil há 1,5 milhão, muitos deles novos adeptos.
Veja – O Corão foi escrito no século VII e reflete bastante os costumes e as circunstâncias daquele determinado momento histórico. Por que é tão difícil para os muçulmanos examinar seus ensinamentos no contexto em que foram escritos em lugar de levar tudo ao pé da letra?
Abdouni – Desde que foi revelado, há catorze séculos, o Corão assegura direitos e deveres que permanecem imutáveis. O livro sagrado também traz soluções para os problemas existentes numa sociedade moderna. Sob esse ponto de vista, o Islã é moderno. Muitos intelectuais ocidentais reconhecem isso. O dramaturgo irlandês Bernard Shaw disse certa vez que, se vivesse na atualidade, aplicando os ensinamentos do Corão, o profeta Maomé resolveria os problemas do mundo tomando uma xícara de chá.
Veja – Em vários países muçulmanos a mulher que tirar o véu em público pode ser presa ou espancada pela polícia religiosa. Isso é moderno?
Abdouni – Essas ações não são preceitos islâmicos, já que se segue o Islã por meio da convicção, e não da imposição. Porém, sabemos o que acontece quando a mulher tira a roupa e se expõe, principalmente no mundo ocidental: ela é desrespeitada de forma inaceitável. Estatísticas mostram que nos Estados Unidos ocorre um estupro a cada seis minutos. A exposição da mulher acaba facilitando esse tipo de crime. É claro que o homem também deve se preservar. O Corão diz que a obrigação de evitar a cobiça e o adultério deve ser de ambos os sexos.
Veja – Nos países que seguem a lei islâmica ao pé da letra, o testemunho das mulheres vale menos que o dos homens nos tribunais e a parte delas na herança também é menor. Essas disposições do Corão também não podem ser consideradas modernas...
Abdouni – Na religião muçulmana, a mulher tem o mesmo espaço que o homem. A questão é que a maioria dos países não pratica o Islã de forma correta. Talvez seja isso o que ocorre hoje. Na época de ouro do império islâmico, quando as leis do Corão eram seguidas à risca, a mulher ocupava papel de destaque na sociedade. Antes do surgimento do Islã, as mulheres não tinham direitos. Na Europa, elas permaneceram nessa situação até a Idade Média. Porém, quanto à herança, há um equívoco na interpretação, pois o homem recebe mais que a mulher por ter de sustentar sua família. Então ele recebe bruto, enquanto a mulher não tem a obrigação de dividir nem de sustentar ninguém. Portanto, o que ela recebe é líquido.
Veja – O senhor permitiria à sua mulher trabalhar fora?
Abdouni – Ela estuda computação e exerce a profissão mais importante para a mulher, que é a de educar os filhos. A mulher tem grande responsabilidade nessa tarefa, mais até do que o homem. Mas, se ela quiser, ela tem o direito de trabalhar.
Veja – A mutilação genital das mulheres é mesmo comum em países de maioria muçulmana?
Abdouni – A mutilação genital é um costume pré-islâmico, proibido pela religião muçulmana. Os líderes religiosos a condenam porque viola os direitos da mulher contidos no Corão. A mutilação genital não é praticada na maioria do mundo islâmico. Apenas em países africanos e, mesmo assim, em algumas tribos. Não é correto julgar o Islã por causa desse costume.
Veja – O profeta Maomé casou-se com uma menina de 9 anos. Casar-se ainda criança é uma imposição do Islã às mulheres?
Abdouni – O casamento é permitido pelo Islã quando a mulher atinge a maioridade. O critério de maturidade para a religião é a puberdade. Antigamente era comum as mulheres se casarem com 9 ou 10 anos. Tanto que ninguém contestou quando o profeta se casou com Aisha, nem os incrédulos, nem os idólatras daquele tempo. Devemos levar em conta os costumes e as tradições de cada período histórico, como também o desenvolvimento físico das pessoas da época.
Veja – Uma das primeiras medidas do aiatolá Khomeini, após a Revolução Islâmica, em 1979, foi baixar para 9 anos a idade mínima para casar. Ele agiu de acordo com a lei islâmica?
Abdouni – Para a religião muçulmana, a mulher não é mais dependente dos pais quando atinge a puberdade e, portanto, a maioridade. Ela passa a ter direitos e deveres, entre eles o direito ao casamento. É assim desde o tempo do profeta. Temos de verificar em que idade a maioria dos jovens de hoje atinge a puberdade e determiná-la como maioridade.
Veja – Por que razão, em caso de divórcio, a lei islâmica dá a guarda dos filhos sempre ao pai?
Abdouni – O Corão assegura às mulheres todos os direitos, incluindo o de escolher o noivo e também o de se divorciar. Nesse caso, pela religião muçulmana, a mãe só perde a guarda dos filhos se não houver entendimento entre os pais e ela se casar outra vez, para poder facilitar um novo relacionamento. Quando atingem a puberdade, os filhos têm a opção de escolher se querem morar com o pai ou permanecer com a mãe.
Veja – O trecho corânico que autoriza os muçulmanos a eliminar infiéis onde os encontrarem é entendido por muitos não-muçulmanos como uma licença para matar. É isso mesmo?
Abdouni – Não. Existe confusão em torno desse versículo. Essa confusão desaparece quando se lê o texto por inteiro. Ele foi revelado depois que os idólatras romperam um acordo de paz com o profeta Maomé. Ou seja, as determinações expressas no versículo só valeram para aquela situação e contra aquele grupo específico. Prova disso são os templos religiosos milenares dos judeus e cristãos que permaneceram protegidos e funcionando normalmente durante catorze séculos de governo islâmico. Os fanáticos de todas as religiões, e não apenas do Islã, costumam usar trechos tirados do contexto para justificar suas ações violentas.
Abdouni – Não há país que pratique o Islã de maneira perfeita. Mas existem alguns países que respeitam os preceitos mais amplos da religião, no que se refere à tolerância, à justiça social, ao desenvolvimento econômico e tecnológico. Nesse grupo eu destacaria a Malásia, a Indonésia e Sharjah, um dos Emirados Árabes Unidos.
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