Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, julho 25, 2005

Escândalo ameaça liderança de Lula na AL, diz analista

Folha de S Paulo

SYLVIA COLOMBO
EDITORA DO FOLHATEEN

A posição de Lula como líder da América Latina está em risco por causa do escândalo do "mensalão". Essa é a opinião de Horacio Verbitsky, 63, colunista político do jornal argentino "Página 12", que se diz "surpreso com a conduta do partido, contrária a sua tradicional bandeira ética".
Para o analista, tensões políticas como a que passa o Brasil ficam mais sérias quando o governo descuida de tentar resolver o problema da desigualdade social no país. Nesse caso, diz, "o escândalo é percebido como uma traição".
Autor de livros importantes para o conhecimento da história recente do país vizinho, como "O Vôo" (ed. Globo), sobre os desaparecidos políticos durante a ditadura, e o recém-lançado "El Silencio", que investiga a cumplicidade da Igreja Católica argentina com a ditadura, Verbitsky concedeu a seguinte entrevista à Folha, por telefone, de Buenos Aires.

Folha - Qual sua impressão sobre a crise do PT no Brasil?
Horacio Verbitsky -
Aqui da Argentina, o que vemos acontecer com o PT é surpreendente, algo que ninguém esperava. O que mais me preocupa com relação à crise no PT é o quanto ela significa uma crise do Brasil.
O Brasil é o país mais importante da América Latina, com capacidade de liderar o resto do continente. E o PT é a experiência política mais original que temos na região.
A combinação dessas duas coisas, do Brasil e do PT, faz com que o que ocorra no Brasil hoje seja muito importante para o resto da América Latina, que certamente sofrerá as conseqüências.
Uma experiência como a do PT no Brasil, com o primeiro operário chegando à Presidência e sendo logo enredado pela corrupção, nos coloca diante de um problema muito grave.

Folha - O sr. acha que a posição de Lula como um líder da América Latina está em risco?
Verbitsky -
Sim, o que é lamentável. Entretanto, ainda não sabemos qual é a capacidade de Lula de reabilitar-se. Talvez sua maior vantagem seja o fato de que, com relação a seus opositores, ele ainda pareça seguir ganhando.
É evidente que é muito grave que a ética do PT se mostre vulnerável, mas acho difícil que alguém no Brasil possa dizer que é mais ético. Que se possa apontar para Fernando Collor ou mesmo para Fernando Henrique Cardoso e dizer que foram mais éticos. Ainda assim, é terrível que a nivelação entre eles esteja acontecendo por baixo.
Em todo caso, não acho que a estabilidade de Lula esteja correndo perigo, mas sim o projeto de reestruturação do país que o PT propunha. Não vejo o sistema político em xeque e nem mesmo em risco a possibilidade de reeleição de Lula em 2006.

Folha - O sr. pensa que há uma crise da esquerda latino-americana?
Verbitsky -
O problema não é a esquerda propriamente dita, mas sim a fase pela qual passam os partidos políticos populares da América Latina. Estes vêm chegando ao governo com um determinado discurso, que pode ser progressista, populista ou distributivo, e depois têm governado com as políticas clássicas de controle da inflação, sem radicalizar as políticas econômicas.
Isso provoca um enorme desencanto na sociedade a respeito do sistema político como um todo. Em distintos momentos recentes, isso vem se passando em diferentes países. Quando a situação econômica está vivendo um ciclo expansivo, os episódios de corrupção espantam menos. Mas, num momento de penúria, é diferente.
No seu discurso de posse, Lula disse que se sentiria satisfeito se as pessoas comessem três vezes por dia. Quando isso ainda é um programa pendente, um escândalo de corrupção como o que estamos assistindo é percebido como uma traição, é ainda mais escandaloso.
Sei que se pode dizer que em termos de macroeconomia o Brasil está melhor, mas o problema social segue agravando-se.

Folha - Em sua campanha eleitoral, nos anos 80, ao final da ditadura, Raúl Alfonsín repetia a frase: "Con la democracia se come, se cura, se educa". Acredita que um erro dos políticos latino-americanos neste período pós-redemocratização tenha sido criar expectativas em excesso na população?
Verbitsky -
A relação que vejo entre as decepções causadas, por exemplo, pela gestão de Raúl Alfonsín, pelo peronismo defendido por Carlos Menem, pelo radicalismo de Fernando de la Rúa e, agora, com o que está acontecendo com o PT está na crise dos grandes discursos.
No fundo, o que as pessoas realmente esperam dos governos é, por um lado, que tenham integridade e, por outro, que adotem políticas econômicas que incluam um componente de distribuição. E essa não tem sido a norma.
Na Argentina, houve um elemento de distribuição nos primeiros anos do governo Menem, quando se conseguiu congelar a inflação.
O mesmo aconteceu também no Brasil com Fernando Henrique Cardoso e o Real. Foram momentos de construção e de ingresso popular, porque se conseguiu frear a inflação.
Mas, tirando esses períodos, o que houve foi uma perda generalizada de poder aquisitivo, apesar de um um crescimento macroeconômico importante e de importantes negócios para alguns grandes grupos. A situação social, em ambos os países, no entanto, segue sendo crítica.

Folha - Na Argentina, o sr. acha que o peronismo sairá fortalecido nas eleições legislativas que ocorrerão em outubro?
Verbitsky -
Não, acho que apenas o presidente Kirchner sairá fortalecido. O sucesso do presidente na eleição demonstrará justamente que o peronismo não é suficiente para enfrentar todos os problemas pelos quais passa hoje a Argentina.
O que o presidente prega é que é necessária uma ampliação política, e que o peronismo como está hoje não é capaz disso. Ele ensaia uma ruptura com um setor do peronismo que é o grande responsável pela situação duríssima à qual chegou a Argentina. Ele enfrentou Menem na eleição de 2003, e, agora, encara Eduardo Duhalde.
Menem e Duhalde são os responsáveis pela situação atual do país. Néstor Kirchner tem, nesse sentido, um nível de adesão muito alto e que deve ser confirmado na eleição.

Folha - Por quê?
Verbitsky -
Porque está modificando esta lógica a que me referi no princípio, a de um partido que chega ao poder com um discurso popular e que, uma vez lá, faz as políticas de ajuste tradicionais.
Kirchner chegou com um discurso que não era claro, que não se podia entender muito bem, mas tomou uma série de medidas que tinham a ver com aquilo que a sociedade pedia.
Entre 1998 e 2003 vivemos cinco anos horríveis na Argentina, com o final do governo Menem, a recessão, um governo de aliança frágil que se desfez e que implantou um programa de ajuste que só conseguiu aprofundar ainda mais a recessão e fomentar mais casos de corrupção.
Depois veio o governo de Duhalde, que produziu uma desvalorização da moeda e transferências de ingressos monstruosas em favor de grupos econômicos mais concentrados.
Tudo isso reduziu o poder aquisitivo dos salários, fez aumentar os níveis de desemprego e de pobreza. Chegamos a uma precarização de condições que pareciam impossíveis em um país como a Argentina.
E Kirchner, bem ou mal, enfrentou todas essas coisas.

Folha - Como o sr. explica o fato de que o peronismo tenha enfrentado tão pouca oposição nos últimos tempos?
Verbitsky -
Bom, a razão é que o próprio Kirchner é essa força de oposição ao peronismo (risos).

Folha - E a esquerda?
Verbitsky -
Nossa esquerda parou ali pelo período paleolítico. Não ficou sabendo de nada do que aconteceu no mundo nas últimas décadas.
A Argentina é especial nesse sentido, acho que é o único país em que é possível uma aliança entre os partidos stalinista e trotskista -representados pelo comunista- e o movimento socialista de trabalhadores.

Folha - Como o sr. vê o futuro próximo da América Latina?
Verbitsky -
Existe uma atitude de não fomentar que os Estados Unidos intervenham em nossos problemas, e isso é positivo. Por outro lado, não vejo um comprometimento dos governos com a problemática regional.
A idéia do presidente Lula de fortalecer uma Confederação Sul-Americana de Nações tem a ver com a expressão de uma hegemonia brasileira contraditória com a associação realmente existente, que é o Mercosul.
Entendo que, politicamente, a Lula lhe caia muito bem dizer que ele é a América do Sul, e falar em nome da América do Sul diante dos atores globais.
Mas não serei convencido de que incluir o Peru ou a Colômbia, que estão negociando sua integração com os EUA, vá contribuir com o Mercosul. É como colocar um Cavalo de Tróia dentro dele. Um problema de interesses contraditórios claros.
Acho que o Brasil deveria ter mais diálogo com a Argentina. Entendo a importância que para o Brasil tem a Comunidade Sul-Americana frente aos atores globais, mas me parece uma fantasia inconsistente pensar que possa existir essa comunidade sul-americana sem a Argentina.

Folha - Como o sr. vê as relações entre Brasil e Argentina hoje?
Verbitsky -
Estão complicadas em parte por causa de problemas políticos argentinos.
O fato de Duhalde ser o presidente da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul, e que Lula tenha desenvolvido com ele um tipo de relação que é oposta à da política argentina, é muito ruim.
Suponho que, agora, ao terminar o mandato de Duhalde, a relação entre Brasil e Argentina possa melhorar e que nossos problemas internos não interfiram tanto nas relações entre os dois países.

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