Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, agosto 01, 2005

A divina tragédia por Gaudêncio Torquato

O Estado de S. Paulo (31/07/05)
Só faltava esta: enquanto o fogo se aproxima do Palácio do Planalto, o presidente Luiz Inácio veste um manto divino. Nenhum brasileiro pode ser mais ético que ele, vive repetindo. No ABC paulista, abraça as massas e recorre ao surrado discurso contra as elites, apostando na criação do chavismo tupiniquim, caso as chamas das CPIs ameacem consumir sua imagem.

O coronel Hugo Chávez até já emprestou a idéia de usar o emblema da República no colete. Usa o Francisco que devolveu uma mala encontrada com US$ 10 mil num aeroporto como ícone da moral, possivelmente desejando fazer contraponto à maior vitrine de malas da corrupção da história brasileira, exibida em pleno governo petista. No Sul, mostra-se indignado contra a bandalheira e pede apuração, doa a quem doer. Tudo muito bonito. Mas a pergunta-chave continua sem resposta: Lula sabia ou não sabia do mensalão para juntar deputados à base governista? Ele não respondeu.

Certos governantes se exercitam na arte de autocontemplação. Como se fossem condenados por Narciso a se apaixonar pela imagem que desenharam para as multidões e a se encantar com as próprias palavras. A psicologia mostra também que, em momentos de perigo, alguns deles têm propensão a se transformar em semideuses, colocando-se acima dos mortais.

Jânio Quadros blefou ao entregar a carta de renúncia, pois esperava que as massas corressem ao seu encontro. No auge da crise que culminou com o impeachment, Collor de Mello se via como um São Jorge brandindo a espada, à espera dos descamisados para defendê-lo. Nixon, cercado por uma cortina de ferro, sentia-se todo-poderoso, jamais imaginando cair nas malhas do escândalo de Watergate. A renúncia era coisa impronunciável. Trancado no Kremlin, Stalin julgava-se onisciente e infalível: "O que há de ser do país sem mim?" Morreu alucinado. O grotesco Idi Amin, de Uganda, peito cheio de medalhas, dizia ao povo que em sonhos conversava com Deus. Perguntaram-lhe: "O senhor sonha com freqüência?" E ele: "Só quando necessário."

Lula deve estar sonhando com o poder divino. Só mesmo quem se acha onisciente pode querer aparecer como o único detentor da verdade, da ética, da moral e dos bons exemplos. Até se admite que o presidente tem carisma para gastar. Continua a ser o símbolo mais forte da dinâmica social no Brasil em todos os tempos.

Mas tal condição não lhe dá o direito de abusar do dom de bom palanqueiro para mistificar as massas, expressando o que elas querem ouvir, mexendo nas angústias de seu cotidiano, puxando o cordão de simpatia que sai facilmente do coração quando há uma identificação de propósitos entre o orador e a platéia.

A mistificação ocorre quando o presidente se faz de opositor, de acusador, de veemente crítico das elites e dos costumes políticos. Precisava alguém gritar, logo após a peroração: "O senhor é o comandante de uma elite política e as práticas de corrupção explodem no seu governo. Portanto, não venha com essa conversa de salvador da Pátria."

Aos mais desatentos é bom lembrar que o presidente está querendo uma agenda positiva para o País. Se a expressão é essa, convenhamos, o País está trilhando uma agenda negativa. E a responsabilidade não pode ser atribuída ao Congresso Nacional. A metástase cancerosa espalha-se por corpos parlamentares, mas teria sido engendrada nos subterrâneos do Poder Executivo.

Ademais, uma agenda positiva combinada com Severino Cavalcanti já nasce negativa. Que moral teria o presidente da Câmara para endossar uma ação propositiva, quando nomes da cúpula do PP aparecem nas listas sobre mensalão? Por outro lado, é compreensível o esforço para blindar o presidente, a fim de que seu governo possa chegar ao fim e garantir a estabilidade da economia, condição para a confiança dos investidores.

Que as propostas em curso, porém, não escondam intenções escusas, como a tese, que corre, de limitar as cassações a um pequeno número como forma de evitar posições extremadas e caóticas e também de afastar o presidente da fogueira.

Se as provas incriminarem o ex-ministro José Dirceu, por exemplo, que já foi acusado de saber dos empréstimos ao PT por Renilda de Souza, mulher de Marcos Valério, a situação resvala para cima e para baixo. Dirceu não vivia dizendo que não fazia nada sem o conhecimento de Lula? Como pode o presidente da República desconhecer uma arquitetura desenhada a seu redor, com tantos arranjos e pontos de contato e, mais que isso, reunindo a nata do PT?

Depois de ter contado a Lula que seu amigo Roberto Teixeira estava usando o nome dele para arrecadar fundos, o economista Paulo de Tarso Venceslau foi expulso do PT. Lula teria reagido com destempero para preservar o companheiro, segundo Paulo (Estado, 28/7). O depoimento do ex-petista é forte. O presidente, na época, sem a aura divina, "fez questão não só de acobertar, mas de punir quem tinha descoberto" o comprometimento do compadre.

O testemunho corrobora a idéia de que a inocência não freqüenta o altar das hostes petistas. Ademais, o partido sempre afinou o tom pelo diapasão da cúpula. Era, até há pouco, um ente rigorosamente vertical na hierarquia e na visão stalinista de poder. Um por todos, todos por um.

Portanto, é preciso cuidado com o uso do aço para a blindagem do presidente. Tudo tem limites. É interessante a proposta do senador Jefferson Peres (PDT-AM) de um pacto entre os grandes partidos para garantir a governabilidade, seja qual for o tamanho da encrenca.

E se a encrenca chegar no colo presidencial? Como se pode deduzir, a liturgia presidencial - falas em palanque, recorrência aos valores da ética e da moral, luta contra a corrupção - faz parte da estratégia de Lula de parecer um ente divino. Nietzsche disse: "A apoteose da aventura humana é a glorificação do homem-deus." Apoteose a que os mandatários costumam recorrer na iminência de tragédias.

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