Atrasada cerca de 30 mil anos, a manchete estava na primeira página
dos jornais desta sexta: "Homo sapiens transou com neandertais".
Nenhuma novidade e, no entanto, sensacional: as espécies, mesmo
condenadas à extinção, não desaparecem subitamente, continuam
acasalando e tentando sobreviver. A novidade é que pesquisadores
liderados pelo sueco Svante Pääbo sequenciaram os genomas de restos de
homens oriundos da Croácia e comprovaram algo que mataria de raiva
Hitler, Gobineau e todas as facções racistas dos quatro cantos do
mundo: a humanidade, além de constituir uma única raça, é fruto de,
pelo menos, duas espécies.
Temos a consciência do homo sapiens e os instintos dos neandertais,
criamos utopias e as enterramos com barbáries (para usar a dualidade
proposta pelo cineasta Silvio Tendler com o seu admirável
documentário). Concebemos Deus e o profanamos com brutalidades pagãs,
produzimos leis para regular a convivência e simultaneamente forjamos
os artifícios para burlá-las, inventamos admiráveis mundos novos com
máquinas que nos permitem dominar a natureza e, simultaneamente,
estamos acabando com ela.
Ao longo dos últimos 500 anos montamos um sofisticadíssimo sistema de
trocas de produtos e valores, mas, por um estúpido erro de digitação
(alguém escreveu bilhões em lugar de milhões), o sistema desabou na
última quinta produzindo um minicrash bursátil.
Nada disso é surpresa, surpresa é que ainda não paramos para refletir
sobre esta combinação embutida em nosso DNA. Ainda não apareceu um
perplexo (ou curioso) como Isaac Newton que, em vez de perguntar-se
por que razão as maçãs só caem em direção do chão, seja capaz de
indagar os motivos da nossa incapacidade para perceber o quanto somos
universais e ambíguos – animais e espirituais, sutis e bestiais,
solitários e massificados.
Trinta mil anos depois, equipados com componentes genéticos tão
diferenciados e ricos parecemos crianças que gostam das gangorras mas
não conseguem divisá-las à sua volta. Acreditar que a debacle
financeira de 2008 seria um episódio facilmente superado e reparado é
uma das fanfarronices que o Financial Times identificou em países
emergentes.
A debacle foi ligeiramente corrigida numa ponta – a Rua do Muro, em
Nova Iorque – mas está incendiando a gloriosa Grécia e pode tomar
conta do Velho Mundo. Para acabar com as guerras a sábia Europa
derrubou fronteiras, unificou moedas e agora não sabe o que fazer com
tantos acordos e tantas aproximações.
A tragédia grega que estamos acompanhando é econômica, mas também
política: a Guerra Fria não começou em Berlim em 1948 mas em 1944, em
seguida a libertação do país por tropas inglesas. Os Anos de Chumbo na
Grécia produziram a ditadura militar (1967-1973) e grupos armados de
esquerda que só foram extintos em 2003.
Os três mortos no confronto de Atenas na última semana resultaram de
um incêndio provocado por um delirante grupo anarquista que não
aceitava o programa de ajuste fiscal proposto pelo governo. A clássica
separação entre gregos e troianos é uma metáfora fratricida que
resiste à passagem do tempo, nada a ver com as divergências sobre a
dívida pública. Talvez um remanescente das espécies que nos compõem e
ainda não se ajustaram.
Foi a herança non-sapiens a responsável pela derrubada do Muro de
Berlim, a multiplicação de bezerros de ouro e o desbragado culto aos
mercados? Terá sido ela o responsável pela revolução tecnológica que
fez da China a única beneficiária da nova prosperidade? Ou foi o homo
sapiens o inspirador da fórmula mineira para a política inglesa
atenuando confrontos e impondo o sistema de coalizões tal como sucedeu
na Alemanha?
Não sabemos para onde vamos, em compensação já começamos a perceber quem somos.