Encontrei-me com o brasilianista Richard Moneygrand, de volta ao Rio para realizar pesquisas e consultorias. Num jantar especial, semicomemorativo, conheci sua nona esposa. 'São muitos casamentos...', resmunga um amigo complacente, o rosto alegre mostrando os olhos azuis sempre fulgurantes de energia e inteligência. 'Ao contrário de você que fez as suas, para mim insonháveis, bodas de platina (45 anos), eu mal cheguei às de cobre (8 anos)...'
'Paciência...', reagi usando a palavra mais gasta do vocabulário nacional, olhando a jovem e bela Mary Smith, que seguia o nosso papo mais como observadora do que como participante.
'Minha história matrimonial é semelhante à experiência política do Brasil. Eu tenho problemas com o casamento monogâmico; vocês, com a 'liberal democracia'. Mais com o 'liberal', menos com a 'democracia', pois debaixo do Equador tudo tem o germe da velha dialética na qual uma coisa devora a outra. Só um brasileiro ousaria juntar 'ordem e progresso'. Se há ordem, termina o progresso; e se ocorre progresso, onde é que fica a ordem? Como nos meus sucessivos casamentos, nessa minha busca de serena intimidade e de paixão arrebatada, é contraditória. Há, no Brasil, quem esteja convencido que o 'liberalismo' (que destrava os interesses e a competição) vai comer uma 'democracia' imaginada concretamente como um regime perfeito, baseado num igualitarismo substantivo. Uma igualdade pré-Iluminista, não perante a lei, mas perante a 'vida' e o que se imagina como suas necessidades básicas, infra-estruturais e pré-políticas: comer, dormir, reproduzir-se... Ao lado desses imperativos morais, vistos como anteriores à própria sociabilidade, entram muitos gatunos e fantasmas.'
- Coisa complicada, não?
- Mas haveria o humano sem a busca do impossível?, retrucou Moneygrand. Sem esses contraditórios 'ordem e progresso'; 'sexo e amor', 'igualdade e hierarquia', 'crescimento econômico fundado no mercado e PAC'? De um lado, as rotinas bem-educadas das cláusulas pétreas, dos axiomas morais indiscutíveis, tipo 'não roubamos e não deixamos roubar'; do outro, as transformações profundas, revolucionárias e carnavalescas, capazes de pôr o mundo de ponta-cabeça mas, é claro, sob a direção dos produtores políticos e culturais adequados. O problema é que vocês amam a convulsão contraditória. O Brasil tem uma aristocracia igualitária.
- Mas você não acha que estamos nos livrando desse peso iberista e marchando para o americanismo?
- Para mim, o Brasil é como aquele bloco de carnaval, inventado pelo Aníbal Machado, no livro João Ternura, lembra?
- Claro, Moneygrand. Como esquecer, se fui eu quem lhe mostrou o carnaval cósmico de João Ternura como um modelo sociológico do Brasil?, repliquei um tanto amuado pela cretinice do brasilianista que me devolvia sem citar, como é comum no mundo acadêmico, algo que eu havia descoberto.
- Estou pensando no carnaval de Aníbal Machado, onde os problemas - mendacidade eleitoral e administrativa, fome, uma desigualdade estrutural que o governo promete corrigir, mas que vai aumentando pelo furor do seu controle legalista - surgem claramente; e, com eles, o bloco 'Custa-mas-vai' que muitos hoje diriam que tem 'custado' mais do que 'ido'.
- Tal como os seus casamentos em série. Essa sua busca constante do amor pleno que você até hoje pensa encontrar prontinho para ser apanhado e levado para casa, certo?
- Perhaps... Você disse uma vez que os Estados Unidos eram o país das sacolas e o Brasil, o dos embrulhos. É outra dialética. Tampada, sacola vira embrulho; e o embrulho, aberto por cima, transforma-se naquilo que nega: vira uma sacola. O mesmo ocorre com outras imagens.
- Já sei, a da Polícia Rodoviária parada, das prisões como centrais do crime e a do Ministério da Desburocratização criado, com seus regulamentos, para cortar o nó da papelada nacional...
- Vocês falam dos portugueses e, no entanto, foi o Brasil que inventou uma burocracia para acabar com a burocracia! Vocês pensam que abstraindo, generalizando e nacionalizando os problemas - que são sempre locais e demandam ações particulares e pontuais - se acabam. Francamente, criar uma burocracia para resolver a burocracia só mesmo nesse Brasil onde um pacote, um PAC, que fecha e contém, quer deflagrar crescimento.
- Iberismos?, sugeri procurando um garçom para pedir mais uma garrafa de uísque e observando a participação cada vez mais intensa de Mary Smith numa roda de samba onde aprendia o 're!que!bra!do!' carioca.
- Perhaps. Melhor seria dizer falta de entendimento das implicações simbólicas de uma sociedade de mercado. É como querer um bom jogo de futebol, com um juiz impedindo certas jogadas. No fundo, vocês têm horror ao sucesso, esse fruto proibido nas sociedades baseadas na honra e na família. Nelas, já se sabe quem são os ganhadores porque não há jogo e ninguém muda de lugar. Agora você entende por que o sucesso (que mexe com o sistema) é, como disse Tom Jobim, uma ofensa pessoal. E para quem ama a nomenclatura e adora planos, projetos e pacotes, o lucro é um engodo do coletivo.