Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 05, 2007

Roberto Pompeu de Toledo

Dois americanos

Duas opostas biografias e visões
de mundo, duas atitudes opostas
diante das ilusões do poder

Paul Wolfowitz vive sua agonia como presidente do Banco Mundial. Wolfowitz, para quem viu o documentário Fahrenheit 11 de Setembro, de Michael Moore, é aquele que aparece cuspindo no pente antes de aplicá-lo nos cabelos. Não estranha que Moore o tenha retratado num momento ridículo. O filme é um libelo contra a Guerra do Iraque, da qual Wolfowitz, como vice-secretário da Defesa dos EUA e um dos expoentes do grupo chamado "neoconservador", foi um dos principais ideólogos. Em 2005, George W. Bush o indicou para presidente do Banco Mundial. Dedicado à assistência aos países pobres, o Banco Mundial é, como o nome diz, uma instituição internacional, não um órgão do governo americano. Mas um antigo acordo prevê que sua presidência será sempre ocupada por um americano, ficando a do Fundo Monetário Internacional com um europeu. Decorre daí que o presidente dos EUA tem o virtual direito de nomear-lhe o presidente.

Wolfowitz tinha um problema ao aportar no novo cargo. Sua namorada, Shaha Ali Riza, uma inglesa de origem libanesa, era funcionária do banco. Marido e mulher, ou namorado e namorada, não podem conviver na instituição, segundo seus regulamentos, se existe subordinação entre eles. Wolfowitz deu um jeito. Conseguiu a transferência de Shaha para o Departamento de Estado. E, para indenizá-la da ruptura na carreira, providenciou-lhe um aumento de salário. Ela passou a ganhar 193.000 dólares por ano, mais que a secretária de Estado, Condoleezza Rice. Por um tempo, o arranjo funcionou. Há poucas semanas, estourou na imprensa, e Wolfowitz não conseguiu mais exercer suas funções em paz. Onde quer que apareça, é cobrado a respeito. Na sede do banco, em Washington, já foi hostilizado por funcionários que gritavam "Fora".

A namorada é o que flutua na superfície do caso. Equivale aos problemas com o Fisco que acabaram por levar Al Capone à desgraça. Numa camada mais profunda, o que se flagra é a sombra do governo Bush num lugar em que não devia estar. Já o fato de a namorada ser posta a escorregar do Banco Mundial ao Departamento de Estado indica uma suspeita promiscuidade entre os dois órgãos. Mas há mais, e pior. Uma recente reportagem da revista The New Yorker dá conta de suspeitas manobras de Wolfowitz. Seguindo uma política de cortar a ajuda a governos considerados corruptos, ele mandou rever acordos com o Camboja, o Chade, o Congo Brazzaville e até a Índia. O Iraque, no entanto, que em matéria de corrupção não se destaca menos, mereceu tratamento inverso: Wolfowitz iniciou negociações para abrir uma representação permanente do banco nesse país. Esse fato, segundo o autor da reportagem da New Yorker, John Cassidy, confirmava o que ele já ouvira de outras fontes: que Wolfowitz continuava "profundamente engajado com a Guerra no Iraque". Lá ia o Banco Mundial sendo arrastado para o papel de braço auxiliar da intervenção americana.

Wolfowitz parecia, na semana passada, no fim da linha. Não se via como pudesse continuar no cargo. Ele ficará não só como um dos símbolos da mistura de miopia e onipotência que conduziu os EUA ao desastre do Iraque, mas também como o personagem que tentou embicar no mesmo rumo os recursos e o prestígio de uma instituição internacional.

David Halberstam morreu num acidente automobilístico no último dia 23, aos 73 anos. Jornalista e escritor, Halberstam mexeu com muitos assuntos, mas ficará associado principalmente à Guerra do Vietnã, o desastre anterior dos EUA, e num papel oposto ao de Wolfowitz no desastre atual. Jovem repórter do New York Times, ele foi, na primeira metade da década de 60, a principal voz a denunciar que o que se passava no Vietnã estava longe de corresponder às versões apresentadas pelo governo americano. Junto com um punhado reduzido de outros repórteres, Halberstam mudou o conceito de correspondente de guerra. De retransmissor de comunicados oficiais, de quem se esperava que mantivesse a chama do patriotismo e tranqüilizasse as famílias em casa, como fora na II Guerra Mundial e em tantas outras guerras, esse profissional virava um perseguidor da verdade que incomodava as autoridades e acendia o espírito crítico dos leitores.

Halberstam escreveu o livro mais fundamental sobre a aventura americana no Vietnã -- The Best and the Brightest (Os Melhores e os Mais Brilhantes). Em 2004, entrevistado pelo então correspondente de O Estado de S. Paulo em Washington, Paulo Sotero, disse, sobre a intervenção no Iraque: "Demos um soco e ficamos com a mão presa no maior vespeiro do mundo". Ele já tinha visto esse filme. Por falar em filme, acrescentou que os arquitetos da invasão do Iraque tinham provavelmente o filme errado na cabeça. Sonhavam com Patton. Deviam estar atentos a A Batalha de Argel. Seria primário dizer que Halberstam foi o americano bom e Wolfowitz é o mau. Mas é justo afirmar que Wolfowitz é o fanfarrão que acaba vítima das ilusões do poder, enquanto Halberstam devotou o melhor de si a denunciá-las e advertir que elas cobram um alto preço.

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