Ler pela metade, saltar páginas e até opinar sobre o livro
que nunca se abriu: tudo vale, diz um ensaísta francês
Jerônimo Teixeira
As bibliotecas podem ser tanto fonte de prazer quanto de angústia. Estão lá todos os livros que você não leu, e cada lombada parece olhar em sua direção com uma censura silenciosa. Reforçando essa cobrança dos séculos, há uma pressão social sobre o leitor. Dependendo da roda que se freqüenta, pode ser embaraçoso admitir que não se leu um romance de Tolstoi ou de Machado de Assis. Mentir, nesses casos, é uma alternativa arriscada: e se você for convocado a dar uma opinião informada sobre um livro que nunca chegou nem a folhear? Um livro lançado recentemente na França pretende aliviar a culpa do não-leitor. De autoria de Pierre Bayard, psicanalista e professor de literatura francesa da Universidade Paris VIII, o ensaio se intitula Comment Parler des Livres que l'On n'A pas Lus? (Como Falar dos Livros que Não Lemos?). Soa como um incentivo descarado à fraude intelectual, um manual de sobrevivência para filistinos. Com alguma malícia, é, sim, possível aprender uma malandragem ou outra com Bayard (veja o quadro). Mas o livro é, sobretudo, um ensaio inteligente sobre as várias formas de apreciar um livro. A leitura da primeira à última página, em ordem e sem saltos, é apenas uma entre inúmeras possibilidades – e nem sempre a mais compensadora.
O livro que foi largado na metade, ou logo nas primeiras páginas, ou lido aos pedaços, ou apenas folheado – todos eles fazem parte do histórico do leitor. Esse destino atinge não apenas os clássicos mais portentosos e exigentes, mas também as obras de consumo rápido. Uma pesquisa recente na Inglaterra colocou Harry Potter e o Cálice de Fogo, best-seller mundial de J.K. Rowling, em segundo lugar na lista dos livros que os entrevistados compraram mas não chegaram a ler. E O Alquimista, de Paulo Coelho, aparece em sétimo (o primeiro lugar coube a Vernon God Little, de DBC Pierre, vencedor do mais prestigioso prêmio literário da Inglaterra, o Man Booker, em 2003. É compreensível que seja pouco lido: o livro é de uma ruindade atroz). Essas quase-leituras são, de acordo com Bayard, tão válidas quanto a leitura total. Aliás, a idéia de que se pode ler um livro por inteiro seria ilusória. Esse esforço de completude é comprometido por uma limitação humana: o esquecimento. As pessoas começam a esquecer uma página quando ainda estão lendo a seguinte. Com o tempo, vão embaralhando as diversas obras que leram, quando não as esquecem totalmente. Sempre que chamadas a dar sua opinião sobre uma obra literária, acabam falando não do livro efetivo, mas da lembrança imperfeita, distorcida, que guardaram dessa obra.
A exigência de ler tudo de todos os livros é, claro, irreal. Existem até advertências clássicas sobre o excesso de leitura. Sobre Livros e Leitura, ensaio magistral de Arthur Schopenhauer, vai nessa linha. O filósofo alemão recomenda parcimônia ao mergulhar nas bibliotecas: a arte de não ler é importantíssima. Só assim é possível selecionar, no meio da mediocridade que predomina em qualquer época, aquelas poucas obras que realmente valem a pena. "Para ler o bom, uma condição é não ler o ruim: porque a vida é curta, e o tempo e a energia, escassos", pontifica o filósofo. O problema é que o tempo de uma vida mortal é escasso mesmo para quem se atenha somente ao "bom". Todo leitor acaba fazendo algum tipo de recorte na biblioteca dos séculos, para constituir sua coleção íntima. O escritor americano Ernest Hemingway recorda, em Paris É uma Festa, a ocasião em que perguntou ao poeta Ezra Pound o que ele achava de Dostoievski. Pound tinha uma cultura poética assombrosa, trafegando com facilidade dos clássicos gregos e latinos aos trovadores provençais e aos modernistas. Mas sua resposta decepcionou Hemingway: "Para lhe ser franco, nunca li os russos". Pound, que era fã de Stendhal, aconselhou o amigo a ler "os franceses".
O caso não é citado em Como Falar dos Livros que Não Lemos?, mas serviria para ilustrar a sugestão mais polêmica de Bayard: qualquer um pode ter uma opinião legítima sobre um livro, mesmo sem tê-lo lido. Pound, afinal, não se limitou a confessar sua ignorância da literatura russa. Ele insinuou que Dostoievski, afinal, é dispensável para quem já leu Stendhal. Trata-se de uma opinião para lá de discutível, sem dúvida – mas toda opinião literária tem sua dose de capricho pessoal. Bayard lembra que há várias maneiras indiretas de conhecer um livro: pela crítica, por resumos, pelo que os amigos falam, pela posição do livro em catálogos e bibliotecas. Pound com certeza sabia quem é Dostoievski. Teria até uma noção exata de sua importância – e não será descabido especular que sua preferência pelos franceses não mudaria com a leitura de Crime e Castigo. Pois todo leitor, argumenta Bayard, carrega consigo uma biblioteca virtual, um repertório de livros que lhe permite se posicionar diante de qualquer obra – mesmo que não a tenha lido.
Em tempo: Como Falar dos Livros que Não Lemos? não tem previsão para ser lançado no Brasil. Mas agora ninguém pode impedir que se fale dele – mesmo sem ler.
O BOM FINGIDOR
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