Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 13, 2007

Mario Vargas Llosa E o homem, onde estava?

Em novo livro, Identity and Violence, o indiano Amartya Sen faz análise racional sobre identidade, intolerância e nacionalidade


Em 1944, em Dhaka, Bengala, nessa época ainda parte da Índia, um menino de 11 anos viu, arrastando-se pelo jardim da sua casa, um homem ferido que pedia água. Esse homem se chamava Kader Mia e era um miserável operário muçulmano que, apesar das desordens e matanças que ensangüentavam a cidade, saíra de casa para trabalhar e assim poder alimentar sua família. Na rua, foi linchado por hindus fanáticos simplesmente pelo fato de ser um muçulmano, do mesmo modo que muitos muçulmanos fanáticos degolavam hindus que encontravam no seu caminho. Mia morreu nos braços desse menino e do seu pai na ida para o hospital.

Amartya Sen, o menino da minha história, nunca esqueceu esse episódio e tampouco as matanças de centenas de milhares de pessoas por causa da guerra religiosa desencadeada na Índia entre hindus e muçulmanos, que culminou com o desmembramento do país e o nascimento do Paquistão. O Paquistão que, por sua vez, anos mais tarde, diante das lutas étnicas e regionais sem piedade que irromperam entre os próprios muçulmanos, também se desmembraria, dando nascimento a Bangladesh. Desde então, o futuro economista e filósofo, Prêmio Nobel de Economia, e um dos pensadores liberais mais lúcidos do nosso tempo, aprendeu a desconfiar dessas categorias coletivas - religião, raça, nação, língua, etc., que pretendem definir de modo conclusivo o que é um indivíduo, vendo no que qualificou como 'minimalização do ser humano' uma semente de violência e crime.

'E o homem, onde estava?' , diz um dos versos do Canto Geral, de Pablo Neruda, que guardo na memória desde a primeira vez que o li, ainda adolescente. É a pergunta que parece fazer Amartya Sen em cada uma das páginas do seu último livro, Identity and Violence - The Illusion of Destiny (WW Norton), publicado recentemente numa Inglaterra que - ao voltar depois de quase oito meses - encontrei em plena agitação, desde os atentados à bomba de julho de 2005, às voltas com debates e dilemas envolvendo o multiculturalismo e a existência em solo britânico de comunidades de raças, línguas e credos diferentes. Efetivamente, onde encontrar o homem e a mulher, seres singulares e concretos, de carne e osso, nessas abstrações em que são dissolvidos pelos teóricos, políticos e clérigos coletivistas, para quem a credencial definitiva e determinante de um indivíduo é o fato de ele pertencer a um grupo? Desagregados, desaparecidos, restituídos brutalmente à condição tribal, para serem apenas peças descartáveis do ente gregário, e assim poderem ser melhor odiados ou endeusados.

Reunião de conferências e textos escritos para todos os cantos do mundo, livro é ensaio corajoso e polêmico, que procura fazer com que a análise racional e a sensatez intelectual prevaleçam sobre os atos de fé, os preconceitos e as paixões políticas que geralmente turvam as discussões sobre identidade, multiculturalismo, globalização e nacionalidade, num mundo que, desde os terríveis atentados terroristas de Nova York, Washington, Madri e Londres, está inseguro e confuso em relação a esses temas e que, sobretudo, se cobre de prevenções e suspeitas com uma imigração crescente e irrefreável de pessoas de confissão muçulmana.

Sen relembra que todo ser humano é muitas coisas ao mesmo tempo e que tentar comprimi-lo numa 'pequena caixinha' - por exemplo, religião, raça ou língua, é desnaturalizá-lo totalmente, e ser condenado a não compreendê-lo. Todos nós pertencemos a muitas coletividades e essa circunstância, ao mesmo tempo que nos aproxima e nos relaciona com um vasto setor, vai também nos diferenciando e afastando de outros (dos quais também somos parte). E então surge a nossa identidade, a partir de uma combinação muito complexa de circunstâncias que nos são impostas e escolhas que fazemos livremente, com as quais confirmamos ou rechaçamos o que nos foi legado por nascimento, família ou educação e optamos por algo diferente. As identidades coletivas suprimem arbitrariamente todas essas nuanças, vendo nos seres humanos não criaturas soberanas, com direitos e deveres inerentes à sua individualidade, mas produtos em série, idênticos entre si, privilegiando apenas uma das suas características - por exemplo, ser negro, muçulmano, cristão, branco, budista, judeu, etc. - e abolindo todas as demais. Esse esquartejamento da humanidade em blocos rigidamente diferenciados é perigoso porque estimula o fanatismo dos que se consideram superiores. Além disso, é uma profunda distorção da realidade humana, principalmente no período moderno, época cujo grande êxito foi justamente ter ampliado o espectro de opções entre as quais o homem e a mulher podem decidir ser diferentes da seita, comunidade ou grupo de onde provêm. A identidade é um processo permanente de recriação.

Eu sou um bom exemplo desse cruzamento de aceitações ou rejeições que, como diz Amartya Sen, constitui a identidade de um indivíduo. Sou peruano, latino-americano, espanhol, europeu, escritor, jornalista, agnóstico em matéria religiosa e liberal e democrata em termos políticos, individualista, heterossexual, adversário de ditadores e construtivistas sociais - nacionalistas, fascistas, comunistas, islâmicos, indigenistas, etc., defensor do aborto, do casamento gay, do estado laico, da legalização das drogas, do ensinamento da religião nas escolas, do mercado e da empresa privada, com uma fraqueza pelo anarquismo, pelo erotismo, o fetichismo, pela boa literatura e o mal cinema, muito sexo e um bom debate de idéias.

Tudo o que sou se esgota nessa pequena enumeração em que, à primeira vista, são enormes as incoerências e contradições? Não. Eu poderia preencher várias páginas mais, mencionando tudo aquilo que acredito ser e não ser e, com certeza, ainda faltariam muitas coisas. Cada uma delas me solidariza com um bom número de pessoas e me torna inimigo de outras tantas. E desse amálgama de tensões e fraternidades, que nunca se acalma e que está sempre se refazendo, nasce a minha identidade. Qualquer pessoa poderia dizer tantas coisas também sobre si mesma, se fizer uma análise imparcial .

Amartya Sen reconhece que, em determinadas circunstâncias, um dos traços de uma pessoa pode se converter na sua característica mais essencial. Por exemplo, o fato de alguém ser judeu na Alemanha nazista, ou ser negro na África do Sul no período do apartheid, reduzia essa pessoa a isso apenas aos olhos dos algozes racistas, para poderem matá-la ou discriminá-la com a consciência tranqüila. Ser gay entre homófobos ou ateu entre crentes fanáticos obriga uma pessoa a privilegiar essa condição acima das outras, convertendo-se num marginal ou perseguido. Em todos esses casos são os outros, por sua intolerância e seus preconceitos, que impõem essa redução da complexidade e diversidade que é o ser humano, de modo que aquele que se afasta do rebanho sinta todo seu repúdio ou seu ódio.

Em seu livro, o professor Sen - indiano de nascimento, inglês de formação, professor em Harvard e Cambridge, cidadão do mundo por vocação - critica os governos que, como o britânico e o francês, com a melhor intenção, transformaram líderes religiosos em procuradores e interlocutores das comunidades de imigrantes muçulmanos. Não é esta também uma maneira de confinar os imigrantes numa dessas caixinhas gregárias, onde eles perdem a sua individualidade? Se desejamos que os imigrantes se integrem nas sociedades ocidentais, o pior que podemos fazer é entregá-los com pés e mãos atados a esses clérigos entre os quais, com freqüência, figuram os islâmicos mais intolerantes e contrários a qualquer forma de assimilação.

Estou de acordo com os sólidos argumentos de Amartya Sen. Exceto um. Para ele, nem mesmo a cultura, na sua mais ampla acepção - as tradições, a língua, os usos e costumes -, seria um grande obstáculo para uma pessoa poder, soberanamente, optar por alternativas totalmente alheias à sua comunidade. Sem dúvida, o ideal seria que a liberdade pudesse ser exercitada por todos e de modo radical. Mas temo que não seja assim e que, em muitos casos, o fator cultural é o obstáculo maior para um homem ou uma mulher conseguirem romper com a tirania da tribo. Não é impossível que o consigam, mas o preço pode ser muito alto.

Aconselho, para quem colocar isso em dúvida, que leia a autobiografia de Ayaan Hirsi Ali, Infidel, onde ela narra a heróica aventura que foi sua emancipação da opressão religiosa e cultural. Mas o que me deixa entusiasmado é o fato de os dois ensaios mais importantes sobre cultura e liberdade, recém-publicados no Ocidente, terem sido escritos por um indiano e uma somali.

Tradução de Terezinha Martino

Arquivo do blog