Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 05, 2007

A história real do assassino Jean-Claude Romand

Inimigo íntimo

Em O Adversário, a história verídica de um
homem que durante anos fingiu uma vida, e
então matou a família para ocultar a verdade


Isabela Boscov


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Exclusivo on-line
Trecho do livro

Um autor de ficção que desejasse inventar para um personagem uma vida dupla dificilmente se sairia melhor do que o francês Jean-Claude Romand – que não era nem escritor nem qualquer outra coisa. A partir de seu segundo ano na faculdade de medicina, quando perdeu um dos exames finais, Romand começou a inventar uma mentira que terminaria por se constituir em sua vida real. Primeiro, escondeu dos colegas que faltara à prova e que já não fazia mais parte do curso. Continuou a freqüentar as aulas, "formou-se" e alardeou ter arrumado emprego na Organização Mundial de Saúde (OMS) como pesquisador graduado. Casou-se com a farmacêutica Florence, teve uma filha e um filho e formou um círculo de amigos em sua cidadezinha, colada à fronteira francesa com a Suíça. Todas as manhãs, beijava a família e saía para trabalhar. Desse momento até retornar para casa, Romand existia em seu limbo secreto. Às vezes, atravessava mesmo a fronteira e entrava, como visitante, na OMS, onde assistia a palestras ou recolhia impressos gratuitos que largava no banco de trás do carro. Noutros dias, parava num acostamento qualquer e ali ficava, hora após hora, lendo publicações médicas, comendo sanduíches ou cochilando. O dinheiro de Romand vinha de seus pais, sogros e outros parentes. Ele dizia que, como funcionário da OMS, tinha direito a investimentos especiais em bancos suíços. Pegava as economias deles e, com elas, sustentava um estilo de vida compatível com o de um cientista que tem na agenda encontros com ministros. Romand alimentou essa ficção durante cerca de quinze anos, sem que nem Florence desconfiasse dele. Quando suas acrobacias financeiras ameaçaram delatá-lo, ele matou a mulher a bordoadas, assassinou os pais e os filhos a tiros e ateou fogo à casa, julgando que morreria no incêndio. Mas sobreviveu e foi desmascarado, num episódio que estarreceu a França – e que o escritor Emmanuel Carrère reconstitui, desde suas origens nebulosas, em O Adversário (tradução de Marcos de Castro; 208 páginas; 30 reais; Record).

Emmanuel Carrère se correspondeu assiduamente com Romand antes e depois de seu julgamento. Pelo desatino do crime, e por ter nascido de uma interação direta e prolongada com o criminoso, O Adversário (que rendeu um bom filme com Daniel Auteuil) é freqüentemente comparado ao clássico A Sangue Frio. Mas nem com muita boa vontade se poderia equipará-lo à investigação do americano Truman Capote sobre o massacre de uma família. Capote entrevistou toda e qualquer pessoa que tivesse alguma ligação com o caso, revirou o passado dos dois assassinos e esteve cara a cara com eles em dezenas de ocasiões. Com um deles, chegou a desenvolver uma estranha amizade, repleta de sobretons sexuais e oportunistas. Ao fim dos quase seis anos em que se debruçou sobre o trabalho, havia produzido uma obra sem precedentes: a reconstituição de um crime verdadeiro que não se baseava nem no sensacionalismo nem na exculpação social dos criminosos, como era regra nesse gênero (que desde o século XIX se provara dos mais populares). Capote refez o trajeto psicológico, por assim dizer, que terminou por levar todas aquelas pessoas a se encontrarem, de forma terrível, numa mesma hora e lugar – e inaugurou, com isso, toda uma nova vertente da literatura dedicada ao crime verdadeiro (veja quadro).

É nesse sentido, então, que O Adversário pertence à categoria de A Sangue Frio. Embora a reportagem de Carrère seja muito menos extensa que a de Capote, e seu senso crítico quanto a seu personagem bem menos aguçado, a missão que seu livro se propõe, e em grande medida cumpre, é a de compreender como Romand, criado por gente austera e honesta, chegou aonde chegou.

O retrato que emerge de sua pesquisa inclui isolamento dentro da família, inadequação sexual (vários amigos se recordam de que Florence rompera o namoro com Romand, a certa altura, por sentir aversão a seu corpo "úmido" e "balofo", e sabe-se lá a que mais) e mitomania avançada: mal inventava uma mentira e Romand já se convencia dela. Mas o autor lembra que, durante todo esse tempo, Romand agiu também como um escroque comum, que roubou o dinheiro de pessoas idosas e crédulas. É nas ocasiões em que essas duas dimensões – a da perturbação mental e a da desonestidade – se sobrepõem que o livro é mais bem-sucedido. E são elas, também, que explicam o título escolhido por Carrère. A expressão "o adversário", em seu sentido bíblico, designa não um oponente comum, mas o maior de todos – Satã, ou simplesmente o mal. Um inimigo que Romand não quis, não pôde ou não soube combater.




Fotos Phil Mccarten/Reuters, AP e David Levenson/Getty Images


LIVROS
9 de maio de 2007

Trechos de O Adversário, de Emmanuel Carrère

Na manhã de sábado, 9 de janeiro de 1993, enquanto Jean-Claude Romand matava a mulher e os filhos, eu participava, com os meus filhos, de uma reunião pedagógica na escola de Gabriel, nosso mais velho. Gabriel tinha cinco anos, a idade de Antoine Romand. Depois da reunião, fomos almoçar em casa de meus pais, enquanto Romand ia para a casa dos pais dele, que matou depois do almoço. Passei sozinho em meu escritório a tarde de sábado e a de3 domingo, horas habitualmente consagradas à vida em família, até porque eu terminava um livro no qual trabalhava havia um ano: a biografia do romancista de ficção científica Philip K. Dick. O último capítulo contava os dias que ele passara em coma antes de morrer. Pus o ponto final no livro na noite de terça-feira e, na manhã de quarta, li em Libération a primeira notícia sobre o caso Romand.

Luc Ladmiral acordara na segunda-feira pouco depois das quatro da manhã, chamado por Cottin, o farmacêutico de Prévessin. Havia um incêndio na casa dos Romand, e seria bom que os amigos fossem salvar os móveis que pudessem ser salvos. Quando chegou, os bombeiros retiravam os corpos. Por toda a vida ele se lembrará dos sacos plásticos cinzentos, lacrados, nos quais tinham enfiado os cadáveres das crianças: horror de se ver. Florence tinha sido coberta apenas por um casaco. Seu rosto, enegrecido pela fumaça, estava intacto. Alisando-lhe os cabelos, num gesto de adeus desolado, os dedos de Luc tocaram alguma coisa estranha. Ele apalpou, virou com cuidado a cabeça da jovem mulher, depois chamou um bombeiro para mostrar-lhe, no alto da nuca, uma chaga aberta. Uma viga deve ter-lhe caído na cabeça, disse o bombeiro: metade do sótão tinha desabado. Depois, Luc subiu no caminhão vermelho no qual tinham estendido Jean-Claude, o único da família que ainda vivia. O pulso batia-lhe fracamente. Ele estava de pijama, inconsciente, queimado porém já frio como um cadáver.

A ambulância chegou, levou-o para o hospital de Genebra. Ainda estava escuro, fazia frio, todo mundo estava molhado pelo jato das mangueiras de incêndio. Como nada mais havia a fazer ali, Luc foi para a casa de Cottin para se secar. À luz amarelada da cozinha, ouviu o apito da cafeteira sem ousar olhar para si próprio. Suas mãos tremiam ao tocar a xícara, mexendo a colherzinha que fazia um barulho horrível. Logo depois foi para casa dar a notícia a Cécile e às crianças. Sophie, a mais velha, era afilhada de Jean-Claude. Alguns dias antes a menina tinha, como tantas vezes, dormido em casa dos Romand. Podia perfeitamente ter ido dormir lá também nessa noite e também estaria num saco cinzento agora.

Desde os tempos de estudantes de medicina em Lyon eles não se separaram mais. Tinham se casado quase no mesmo dia, seus filhos cresceram juntos. Cada um sabia tudo da vida do outro, o dia-a-dia mas também os segredos, segredos de homens fiéis, bem comportados, nem por isso imunes à tentação. Quando Jean-Claude confidenciou-lhe sobre um caso amoroso dizendo que ia largar a família, Luc chamou-o à razão: "Também vou fazer isso quando for a minha vez de me enrabichar por uma mulherzinha." Uma amizade dessas é uma das coisas preciosas da vida, quase tão preciosa como um casamento de sucesso, e Luc tinha como certo que um dia eles chegariam aos sessenta, setenta anos e do alto dessas idades, como de uma montanha, olhariam juntos para o caminho percorrido: os momentos em que tinham tido contrariedades, em que quase se tinham extraviado, a ajuda que cada um tinha dado ao outro, a maneira pela qual, afinal de contas, eles tinham percorrido seus caminhos honrosamente. Um amigo, um amigo verdadeiro é também uma testemunha, alguém através do qual se pode avaliar melhor sua própria vida, e cada um, decorridos vinte anos sem interrupção, tinha desempenhado esse papel em relação ao outro sem grandes palavrórios. Suas vidas se pareciam, ainda que não tivessem percorrido itinerários iguais. Jean-Claude tinha se tornado uma sumidade da pesquisa, freqüentando ministros e marcando presença em colóquios internacionais, Luc era clínico-geral em Ferney-Voltaire. Mas não tinha inveja. Apenas os mantinha um pouco afastados, nos últimos meses, um desacordo absurdo quanto à escola dos filhos. Jean-Claude, de modo incompreensível, tinha, como se diz, subido a serra por causa disso, enquanto Luc, antes de começar a se irritar também, conseguiu manter-se num nível razoável, dizendo que não iria se perturbar por uma ninharia dessas. Essa história o inquietava, Cécile e ele tinham discutido o caso por noites seguidas. Como isso era ridículo agora! Como é frágil a vida! Ainda ontem, havia uma família feliz, pessoas que se amavam, e agora um acidente com uma caldeira, corpos carbonizados levados para o necrotério. A mulher e os filhos eram tudo para Jean-Claude. Que seria de sua vida se ele se salvasse?

Luc intercedeu junto aos serviços médicos de urgências em Genebra: o doente foi posto numa câmara hiperbárica, havia perigo de vida.

Com Cécile e as crianças, ele rezou para que Jean-Claude não recobrasse a consciência.

Quando abriu seu consultório, dois policiais o esperavam. As perguntas deles pareceram-lhe estranhas. Queriam saber se os Romand não tinham inimigos declarados, atividades suspeitas... Como declarasse seu espanto, os policiais disseram-lhe a verdade. O primeiro exame dos cadáveres provava que eles tinham morrido antes do incêndio, Florence por feridas na cabeça causadas por um instrumento contundente, Antoine e Caroline abatidos a tiros.

E não só isso. Em Clairvaux-les-Lacs, na região do Jura, o tio de Jean-Claude tinha sido encarregado de dar a notícia da catástrofe aos pais dele, velhos frágeis. Acompanhado por seu médico, o tio de Jean-Claude foi à casa deles. A casa estava fechada, o cachorro não latia. Inquieto, ele forçou a porta e descobriu o irmão, a cunhada e o cachorro em poças do próprio sangue. Também tinham sido abatidos a tiros.

Assassinados. Os Romand tinham sido assassinados. A palavra provocava na cabeça de Luc um formidável eco. "Houve roubo?", perguntou, como se isso pudesse reduzir o horror da situação a alguma coisa de racional. Os policiais ainda não sabiam, mas esses dois crimes, em locais distantes 80 quilômetros um do outro, com os assassinatos de membros de uma mesma família levavam a pensar antes numa vingança ou num ajuste de contas. Perguntaram sobre possíveis inimigos de Jean-Claude, e Luc, desorientado, balançava a cabeça: inimigos, os Romand? Todo mundo gostava deles. Se tinham sido assassinados, só podia ser por pessoas que não os conheciam.

Os policiais ignoravam qual era exatamente a profissão de Jean-Claude. Médico, diziam os vizinhos, mas ele não tinha consultório. Luc explicou que ele era pesquisador da Organização Mundial de Saúde, em Genebra. Um dos policiais telefonou pedindo para falar com alguém que trabalhasse com o doutor Romand: sua secretária ou um dos seus assessores. A telefonista não conhecia o doutor Romand. Como o policial insistisse ela lhe passou o diretor do pessoal, que consultou os fichários e confirmou: não havia doutor Romand na OMS.

Luc então compreendeu e sentiu um imenso alívio. Tudo que tinha acontecido a partir das quatro horas da manhã, o telefonema de Cottin, o incêndio, as feridas de Florence, os sacos plásticos cinzentos, Jean-Claude na enfermaria dos gravemente queimados, essa história de crimes, afinal, tudo aquilo que tinha ocorrido com perfeita verossimilhança, uma impressão de realidade que não dava nenhuma margem a dúvida, agora, graças a Deus, tudo aquilo descarrilhava, apresentava-se como realmente era: um pesadelo. Quanto a ele, iria acordar do pesadelo em sua cama. Já se perguntava se se lembraria de tudo e se teria coragem de contar aquilo a Jean-Claude. "Sonhei que sua casa tinha se incendiado, que sua mulher, seus filhos, seus pais tinham sido assassinados, você estava em estado de coma e na OMS ninguém o conhecia." Seria possível contar isso a um amigo, mesmo ao melhor amigo? A idéia dominou Luc, e logo seria ampliada. Nesse sonho Jean-Claude desempenhava um duplo papel e agora revelavam-se os medos que tinha a respeito de sua própria vida: medo de perder os seus, mas também de perder-se a si próprio, de descobrir que por trás de uma fachada social ele não era ninguém.

No correr do dia, a realidade virou um pesadelo ainda pior. Convocado de tarde à polícia, Luc soube, em cinco minutos, que tinha sido achado no carro de Jean-Claude um bilhete escrito por ele em que se declarava responsável pelos crimes e que tudo aquilo que se acreditava a respeito de sua carreira e de sua atividade profissional era um engodo. Uns poucos telefonemas de verificações elementares foram suficientes para fazer cair a máscara. Na Organização Mundial de Saúde ninguém o conhecia. Na ordem dos médicos, Jean-Claude não tinha ficha de inscrição. Nos hospitais de Paris dos quais se dizia interno seu nome não figurava nas listas, assim como não figurava nas da faculdade de medicina de Lyon, onde, porém, o próprio Luc e muitos outros juravam que tinham estudado com ele. Jean-Claude havia começado o curso, sim, mas deixara de fazer os exames a partir do segundo ano e, desse ponto em diante, tudo era falso.

Luc, primeiro que tudo, recusou-se com toda a ênfase a acreditar na história. Quando se vem dizer que seu melhor amigo, o padrinho de sua filha, o homem mais correto que você conheceu, matou a mulher, os filhos, os pais, e que mentia para você a respeito de tudo havia muitos anos, o normal não será manter a confiança nele, ainda que indo na direção oposta de provas desanimadoras? Que amizade seria aquela se ele se deixasse convencer tão facilmente de que estava errado em relação ao amigo? Jean-Claude não podia ser um assassino. Faltava, claramente, uma peça no quebra-cabeças. Mas essa peça acabaria por ser encontrada e tudo mudaria de sentido.

Para os Ladmiral, esses dias transcorreram como uma provação sobrenatural. Os discípulos de Jesus viram quando ele foi preso, julgado, supliciado como o último dos criminosos e entretanto, ainda que Pedro tenha fraquejado, continuaram a crer nele. No terceiro dia, viram que tinham razão de persistir nessa atitude. Cécile e Luc lutaram com todas as forças para persistir. Mas no terceiro dia, e até antes, tiveram de admitir que sua esperança era vã e que seria preciso conviver com aquilo: não apenas a perda dos que tinham morrido, mas o fim da confiança, a vida toda ferida pela mentira.

Ah, se pudessem ao menos proteger os filhos! Dizer-lhes apenas — e isso já seria tão doloroso — que Antoine e Caroline tinham morrido num incêndio com os pais. Mas não adiantava nada ficar escondendo as coisas. Em poucas horas a região fora invadida por repórteres, fotógrafos, técnicos de televisão que perseguiam todo mundo, até mesmo as crianças de escola. Desde terça-feira todos sabiam que Antoine e Caroline (e a mãe deles) tinham sido mortos pelo pai, que depois pusera fogo na casa. As crianças começaram a sonhar muito que sua casa ardia em chamas e que seu pai fazia como o de Antoine e Caroline. Luc e Cécile sentavam-se na ponta dos colchões que tinham juntado uns aos outros porque ninguém tinha coragem de dormir sozinho, eram cinco pessoas no quarto dos pais. Sem saber ainda como explicar, eles ninavam, faziam carinhos, tentavam ao menos tranqüilizá-los. Mas sentiam com clareza que suas palavras não tinham o poder mágico de antes. Uma dúvida se insinuara, nada a não ser o tempo poderia arrancá-la. Isso queria dizer que a infância lhes tinha sido roubada, a vida não era a mesma para os filhos nem para os pais, que nunca mais os pequenos se deixariam ficar nos braços dos pais com aquela milagrosa confiança que, sendo milagrosa, é normal na idade deles, nas famílias normais. E pensando nisso, nisso que tinha sido irremediavelmente destruído, Luc e Cécile começaram a chorar.

Na primeira noite, o grupo de amigos de sempre se reuniu em casa de Luc e Cécile — e isso se repetiu por todas as noites durante uma semana. Ficavam lá, esses amigos, até as três, quatro horas da manhã, tentando dividir entre todos os efeitos do golpe. Esqueciam-se de comer, bebiam muito, muitos voltaram a fumar. Não se tratava de noites fúnebres, eram mesmo as mais animadas que a casa conhecera porque o choque fora tal que os precipitara num rodamoinho de questões e de dúvidas que fazia o luto entrar em curto-circuito. Cada um deles passava ao menos uma vez por dia na sede da polícia, fosse por convocação, fosse para acompanhar o andamento do processo, e ao longo de toda a noite discutiam sobre isso, comparavam informações, levantavam hipóteses.

A região de Gex é uma planície ampla de uns trinta quilômetros que se estende ao pé dos montes da cadeia do Jura até as margens do lago Leman. Embora situada em território francês, é na verdade um subúrbio residencial de Genebra, um conjunto de ricas aldeias nas quais se estabeleceu uma colônia de funcionários internacionais que trabalham na Suíça, recebem em francos suíços e em sua maioria não estão sujeitos a impostos. Todos têm mais ou menos o mesmo ritmo de vida. Moram em antigas fazendas transformadas em aldeias confortáveis. O marido vai para o escritório dirigindo um Mercedes. A mulher dirige um Volvo para suas compras e as diversas atividades sociais. Os filhos freqüentam a escola Saint-Vincent, à sombra do castelo de Voltaire, uma escola particular que cobra caro. Jean-Claude e Florence eram figuras conhecidas e queridas nessa comunidade, tinham seu grupo e todos aqueles que os conheceram agora perguntavam: de onde vinha o dinheiro? Se eles não eram aquilo que aparentavam ser, que eram então?

O procurador da República interino mal se tornou encarregado do inquérito declarou aos repórteres que naquele caso "podia-se esperar tudo". Depois, a um primeiro exame das contas bancárias, disse que o móvel dos crimes era "o medo que o falso médico tinha de ser desmascarado e a paralisação brutal de um tráfico de contornos ainda obscuros do qual ele era uma das peças-chave, recebendo durante muitos anos somas consideráveis". Esse comunicado mexeu com as imaginações. Começou-se a falar de tráfico de armas, de divisas, de órgãos humanos, de entorpecentes. De uma vasta organização criminosa agindo no antigo bloco socialista em decomposição. Da Máfia russa. Jean-Claude viajava muito. No ano anterior tinha ido a Leningrado, de onde trouxera bonecas matriarcas para Sophie, sua afilhada. Luc e Cécile, num acesso de paranóia, desconfiaram que essas bonecas escondiam documentos comprometedores, algum microfilme ou microprocessador, perguntaram-se se não eram essas coisas que os assassinos tinham procurado em Prévessin e Clairvaux. Porque Luc, cada vez mais isolado, ainda queria acreditar em alguma trama. Jean-Claude talvez fosse um espião, um traficante de segredos científicos ou industriais, mas não podia ter matado a sua família. Eles a tinham matado, eles tinham fabricado provas para incriminar Jean-Claude como autor dos assassinatos, eles tinham até mesmo destruído vestígios de seu passado.

"Um acidente vulgar, uma injustiça podem levar à loucura. Perdão, Corinne, perdão meus amigos, perdão aos ótimos integrantes da associação de Saint-Vincent que queriam me dar uma surra."

Era o texto do bilhete de adeus deixado no carro. Que acidente vulgar? Que injustiça? Era o que os "amigos" se perguntavam, todos os que iam à noite à casa dos Ladmiral. Muitos deles faziam parte dos "ótimos integrantes" da associação dirigente da escola — a esses é que os policiais não deixavam em paz. Todos tinham obrigação de fornecer uma versão detalhada do movimento de protesto havido, na última volta às aulas, quando tinha sido substituído o diretor. Os policiais os ouviam com o ar aparentemente desconfiado. Não era essa a injustiça que teria causado o drama? Os membros da associação estavam apavorados: perguntavam mesmo, entre si, se algum deles não havia falado em dar uma surra em Jean-Claude, mas era preciso ser louco para estabelecer uma relação entre aquele movimento de protesto e o massacre de uma família inteira! Era preciso ser louco, concordavam os policiais, mas isso não impedia que existisse uma relação entre as coisas.

Quanto ao testemunho de Corinne, cujo nome os jornais tinham recebido ordem de calar e falavam só de uma "amante misteriosa", fora perturbador. No sábado anterior aos assassinatos, Jean-Claude a tinha encontrado em Paris, onde ela morava, e a levara a jantar em Fontainebleau, em casa de seu amigo Bernard Kouchner. Algumas horas antes da possível viagem a Paris, segundo a autópsia, ele tinha matado a mulher, os filhos e os pais. Claro, Corinne não duvidava de nada. Num recanto isolado da floresta, ele também tinha tentado matá-la. Ela lutou, ele desistiu e a levou de volta à casa dela dizendo que estava gravemente doente e que isso explicava seu acesso de loucura. Sabendo do massacre na segunda-feira e compreendendo que quase teria sido uma sexta vítima, ela própria tinha chamado a polícia, que convocara Kouchner, o qual jamais tinha ouvido falar do doutor Romand, e não tinha casa em Fontainebleau.

Todo mundo conhecia Corinne em Ferney, onde ela tinha morado antes de se divorciar e mudar para Paris. Mas ninguém sabia de sua ligação com Jean-Claude, salvo Luc e sua mulher, que por esse motivo não gostavam dela. Consideravam-na uma criadora de problemas, capaz de dizer qualquer coisa para se tornar interessante. Como, porém, a hipótese de premeditação foi se tornando cada vez mais insustentável com o passar dos dias, a possibilidade de crime passional acabara caindo no vazio. Luc se lembrava das confidências de Jean-Claude, a profunda depressão em que o tinha mergulhado a ruptura de seu caso amoroso. Podia bem imaginar, se a relação com Corinne tivesse sido retomada, que isso tivesse levado o amigo à loucura: o vaivém entre esposa e amante, a engrenagem de mentiras e, acima de tudo, a angústia da doença... Porque Jean-Claude também confidenciara a ele que tinha um câncer, do qual se tratava em Paris com o professor Schwartzenberg. Luc falou disso aos policiciais, que examinaram esse aspecto. O professor Schwartzenberg não o conhecia, tanto quanto Kouchner, e a investigação, estendida aos serviços de cancerologia de todos os hospitais franceses, não localizou em nenhum deles um registro com o nome de Jean-Claude Romand.

Corinne fez seu advogado exigir que a imprensa não falasse dela como a amante do monstro e, sim, como uma simples amiga. Depois se soube que ela tinha enviado 900 mil francos franceses de economias a Jean-Claude, pedindo-lhe que os depositasse na Suíça, na conta dela — mas em vez disso ele os tinha desviado. O misterioso tráfico se reduzia então a um vulgar calote. Não havia nada de espionagem ou de grande banditismo. Os investigadores achavam que ele também teria abusado da confiança de outros componentes de seu grupo e os jornais deixavam transparecer que esses amigos não tinham coragem de se queixar porque os investimentos com os quais os tinha seduzido eram ilegais: isso talvez explicasse por que o círculo dos notáveis de Ferney se mostrasse tão reservado... Essas insinuações exasperavam Luc. Como "melhor amigo" do assassino, ele era perseguido incessantemente por esses tipos de blusão de couro que lhe enfiavam na cara identificação de jornalista e o perseguiam com microfones oferecendo-lhe pequenas fortunas para que lhes franqueasse seu álbum de fotografias: sistematicamente ele os punha porta a fora, para que não se sujasse a memória dos mortos. Com isso, suspeitavam que se tratasse de um fraudador do fisco.

Outras revelações vieram da família de Florence, os Crolet, que moravam em Annecy e que os Ladmiral conheciam bem. Também eles tinham confiado dinheiro a Jean-Claude: e logo que o pai de Florence morreu, a primeira retirada de Jean-Claude foi de um milhão de francos, que o sogro conseguira com a venda da casa. E não apenas se soube desse dinheiro, fruto do trabalho de toda uma vida, definitivamente perdido, mas também havia suspeita quanto a essa morte: o velho morrera caindo de uma escada num dia em que estava sozinho com Jean-Claude. Não teria Jean-Claude assassinado também o sogro?

Todos se perguntavam: como foi possível viver tanto tempo ao lado desse homem sem suspeitar de nada? E cada um rebuscava a memória em busca da lembrança de um momento em que essa suspeita, alguma coisa que poderia ter levado a uma suspeita, houvesse aflorado. O presidente da associação dirigente da escola contava a todo mundo como procurara em vão nos organismos internacionais alguma irregularidade de Jean-Claude. O próprio Luc se lembrava da estranheza que sentira, alguns meses antes, quando soubera por Florence que o amigo tinha sido o quinto colocado na residência, em Paris. Não era o sucesso dele que o espantava, mas o fato de não ter sabido de nada na época. Interrogado, acusado de fazer segredinho, Jean-Claude dera de ombros, dissera que falar daquilo seria jogar conversa fora, mudou de assunto. Era extraordinária sua capacidade de desviar o rumo da conversa quando o assunto era ele. Fazia-o de um modo tão natural que ninguém se dava conta disso, e, quando se voltava a pensar nisso, era para admirar sua discrição, sua modéstia, sua preocupação de valorizar mais os outros do que a si mesmo. Luc sentia vagamente, entretanto, que alguma coisa não se encaixava quanto à carreira dele. Tinha pensado em verificar na Organização Mundial de Saúde exatamente o que lá fazia Jean-Claude. Mas acabou considerando absurda essa atitude. E agora dizia a si mesmo que se tivesse feito isso as coisas poderiam ter se passado de modo diferente.

"Talvez", disse Cécile quando ele lhe falou desse remorso, "talvez ele tivesse matado você também."


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