Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 05, 2007

A fogueira de livros de Roberto Carlos

A fogueira de Roberto Carlos

O cantor faz acordo para deter a venda de
sua biografia – e para destruir 11 000 livros


Jerônimo Teixeira

Se um dia publicar sua biografia autorizada, Roberto Carlos provavelmente vai omitir a tarde que passou em um tribunal de São Paulo discutindo os meios de destruir mais de 10.000 livros. No entanto, esse é um momento definidor na trajetória do chamado rei da música brasileira: na sexta-feira 27 de abril, depois de cinco horas e meia de audiência conciliatória, Roberto Carlos conseguiu que a editora Planeta e o historiador Paulo Cesar de Araújo concordassem em tirar a biografia Roberto Carlos em Detalhes das livrarias. Os 10.700 livros que a editora mantinha em estoque foram levados na quinta-feira 3 para um depósito de propriedade do cantor. Nos próximos dois meses, a Planeta deverá recolher os exemplares que restam nas lojas. Depois, será o tempo de Roberto decidir como dispor deles. A intenção é que o papel seja reciclado. Se não for viável, os volumes serão queimados. Uma fogueira de mais de 10.000 livros seria uma visão para extasiar Goebbels. "Só uma pessoa que não gosta de ler queimaria 10.000 livros", diz Araújo, que se sentiu coagido a aceitar o acordo depois que seus editores optaram pela saída fácil. Tamanha destruição cultural só se tornou possível por uma conjunção de fatores aberrantes: uma estrela melindrosa, uma editora que se acovardou e não levou até as últimas instâncias uma causa que envolve princípios fundamentais e um sistema judiciário em que a liberdade de expressão e o raramente mencionado "direito à história" ainda não encontram a justa guarida.

Três pontos teriam incomodado Roberto na biografia proibida: a narrativa do acidente de infância em que perdeu parte de uma perna, as revelações sobre sua vida sexual e o relato da agonia de sua mulher Maria Rita, que morreu de câncer em 1999. São quase todos fatos conhecidos e previamente publicados pela imprensa, o que derruba a alegação de invasão da privacidade feita pelos advogados do cantor. Surpreende que a obra de um fã, eminentemente elogiosa, tenha causado tanta indignação. Mas mesmo antes de ler o livro, quando soube que ele estava para ser publicado, Roberto já consultava seus advogados sobre a jurisprudência brasileira a respeito de biografias não autorizadas. Não é a primeira vez, aliás, que o cantor barra um livro a seu respeito. Em 1979, ele conseguiu, por meio da Justiça, que fosse recolhido O Rei e Eu, de Nichollas Mariano, seu ex-mordomo. A obra fazia inconfidências sobre as aventuras amorosas do cantor. "O Roberto nunca foi muito exigente em termos de mulheres. Qualquer uma que aparecesse e ele tivesse afim (sic) no momento servia", escreveu o mordomo.

Os processos contra o livro começaram a correr em janeiro, em duas comarcas. No Rio de Janeiro, instaurou-se um processo cível contra o livro, por danos morais e materiais. Roberto Carlos pedia uma indenização elevada – conhecedores do caso falam em 10 milhões de reais –, o que terá sido decisivo para que a editora e o autor (ainda que inconformado) aceitassem fechar um acordo. Também foi do Rio que partiu a primeira decisão liminar de retirar o livro do mercado, em fevereiro. Em São Paulo, os advogados do cantor entraram com uma queixa-crime, pelo suposto ataque à honra de Roberto. Em casos do gênero, uma audiência de conciliação se torna obrigatória. O acordo a que se chegou nessa instância prevê que Roberto desista também do processo cível – e, por conseqüência, de qualquer indenização financeira. "A princípio, os advogados da Planeta me informaram que não haveria conciliação. Mas em momento algum da audiência se falou em preservar meu livro", reclama Araújo.

A Constituição brasileira garante tanto o direito à privacidade como a liberdade de expressão. Nas biografias não autorizadas, os dois princípios freqüentemente entram em choque. Juristas tendem a considerar que não existe supremacia de um sobre o outro. No entanto, a liminar do juiz Maurício Chaves de Souza Lima, do Rio, falava da prevalência dos "direitos de personalidade" sobre a liberdade de expressão – e ainda declarava, com base no equívoco artigo 20 do novo Código Civil, que só podem ser publicadas biografias que tenham "a prévia autorização do biografado". A se consagrar esse princípio, a pesquisa histórica estaria inviabilizada.

O entendimento que emergiu de décadas de jurisprudência em países com maior tradição democrática, como os Estados Unidos, é que a privacidade das pessoas públicas não tem a mesma extensão daquela do cidadão comum. Políticos, artistas, celebridades em geral têm todo interesse em ver consagrada – em alguns casos, imposta – uma certa versão de sua vida. Mas cabe aos estudiosos e historiadores, para não falar dos fãs, o direito de cotejar essa versão com outras, alternativas. A história de Roberto Carlos, um cantor confessional que sempre propalou suas tantas emoções pela música, não é propriedade exclusiva sua. O escritor Paulo Coelho, em artigo na Folha de S.Paulo, censurou a própria editora, a Planeta, pelo acordo para tirar de circulação Roberto Carlos em Detalhes – e se declarou chocado com a "atitude infantil" de Roberto. Coelho aprendeu uma lição fundamental que falta a muitas celebridades: "Minha vida privada não mais me pertence".

Com reportagem de Sérgio Martins e Marcelo Marthe

Essas recordações me matam

Rogerio Lacanna
Roberto Carlos: indenização de milhões de reais para se firmar como dono da própria história


"Zunga (Roberto Carlos) e Fifinha pararam numa beirada entre a rua e a linha férrea para ver o desfile. Atrás deles, uma velha locomotiva a vapor começou a fazer uma manobra para pegar o outro trilho e seguir a viagem. Uma das professoras temeu pela segurança das crianças próximas do trem e gritou para elas saírem dali. Mas, ao mesmo tempo, avançou e puxou a menina, que caiu sobre a calçada. Roberto Carlos se assustou com aquele gesto brusco, recuou, tropeçou e caiu na linha férrea segundo antes de a locomotiva passar. A locomotiva avançou por cima do garoto, que ficou preso embaixo do vagão, tendo sua perninha direita imprensada sob as pesadas rodas de metal.
"

Trecho do livro
Roberto Carlos em Detalhes

BENDITAS INCONFIDÊNCIAS

O que as obras oficiais escondem e as biografias não autorizadas revelam sobre a época e a personalidade de figuras célebres

GANDHI

• O líder hindu tinha o hábito de beber a própria urina
• Costumava dividir a cama com uma sobrinha-neta de 19 anos

MAO TSÉ-TUNG

• O ditador chinês não escovava os dentes e negava-se a tratar uma doença venérea que transmitiu a dezenas de concubinas
• Na Grande Marcha de 1934 e 1935, obrigou suas colunas do Exército Vermelho a desvios e carnificinas desnecessários só para prejudicar seus rivais

MICK JAGGER

• O vocalista dos Rolling Stones teve aventuras homossexuais com gente como o cantor David Bowie e o bailarino Rudolf Nureyev
• É um sujeito ambicioso e pão-duro nos negócios

RAINHA VITÓRIA

• Embora fosse uma mulher de opiniões fortes, abominava a idéia de emancipação feminina
• Seu primeiro ato ao subir ao trono foi exigir que a mãe a deixasse sozinha por uma hora – até então, nunca tivera direito a privacidade

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