Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 13, 2007

FERREIRA GULLAR

Filosofia de aranha


Afinal, não é essa a tarefa desses bichos: fazer armadilhas para pegar as moscas e comê-las?

DEVO ADMITIR que, a cada dia, fico mais perplexo diante do mundo. Não tenho explicação para coisas aparentemente tão simples como a existência das aranhas. Há quem diga que elas têm serventia e possivelmente terão, como, por exemplo, comer as moscas. E as moscas, para que servem as moscas? Responderão: para ser comidas pelas aranhas, que são comidas pelas lagartixas, seres esses, todos eles, cada vez mais raros em nosso ambiente doméstico.
Aqui em casa, de vez em quando, surge uma lagartixa, que me acostumei, desde menino, a chamar de osga. Ela é branca, às vezes transparente e, de repente, aparece grudada à parede da cozinha, quando acendo a luz. Na época em que meu gatinho ainda vivia, ele era o primeiro a se dar conta da presença da osga e logo subia no armário da pia, de olhos fixos nela; e miava, pedindo minha ajuda para capturá-la.
Em vez disso, tratava de tirá-lo de lá, apagava a luz e fechava a porta da cozinha. Ele insistia, miando diante da porta fechada, mas eu fingia que não estava entendendo. Certa noite, surpreendi-o na sala, dando um bote numa lagartixa que se aventurara a passear pela casa. Corri em socorro dela, que já perdera o rabo, e a levei de volta à área de serviço, que é o lugar de lagartixas.
Depois que meu gato morreu, o aparecimento de uma ou outra osga, seja na cozinha ou onde for, já não me causa a mesma aflição. Mas, faz duas semanas, a empregada encontrou um filhote delas, morto no corredor, entre a sala e o escritório; devo tê-lo atropelado, involuntariamente. Fiquei penalizado -e não é que, dias depois, me surge outro filhote no chão do banheiro? Tentei pegá-lo para evitar que tivesse a mesma sorte do irmão, mas ele, rebolando, correu, entrou no ralo e sumiu. Melhor assim.
É um problema a existência desses bichos delicados, que podemos chamar de animais domésticos, embora habitem nossa casa. São, de fato, moradores clandestinos, que surgem não se sabe de onde e nos surpreendem. Já escrevi sobre eles -não sobre as lagartixas, mas sobre as aranhas. Contei, numa crônica, o flagra que dei numa delas, no meu escritório -mas noutro apartamento, da rua Visconde de Pirajá. Era uma tarde de domingo e, enquanto o pessoal se divertia na praia, estava ela ali, pertinaz, cuidando da vida: sob o peitoril da janela, onde armara sua teia, acabara de capturar uma mosca incauta, que, sem perda de tempo, empacotava em sua teia.
Assistia eu àquilo, sem tomar partido, e a segui com os olhos quando empurrou a presa empacotada para o centro da teia, onde começou a devorá-la. Esse espetáculo feroz e silencioso ocorria em meu escritório, numa tarde linda de domingo, em Ipanema, sem que ninguém, afora eu, se desse conta. Enquanto lá fora, pensei, passam os ônibus e as pessoas cruzam a rua com barracas de praia nos ombros, está esta aranha aqui, sinistra, a devorar uma pobre mosca. Mas, afinal, não é essa a tarefa das aranhas: preparar armadilhas para capturar as moscas e comê-las?
Não sei se as moscas têm família, pois, se tiverem, será terrível para os parentes verem um membro do grupo ser devorado por um pequeno monstro de muitas pernas e mente ardilosa. Já eu, que nem mosca sou, nem aranha, mantenho-me como observador imparcial da tragédia.
Depois, mudei de casa e de país. Contra minha vontade, andei pelo mundo, como uma mosca a fugir das aranhas, até que um dia, já sob o regime democrático, deparo-me com uma aranha ao abrir o "Dicionário de Filosofia", de José Ferrater Mora. Era uma delas bem menor que uma mosca e que deveria alimentar-se de bichos minúsculos. Mas, naquele momento, não pensei nisso, tão surpreso fiquei ao vê-la, levíssima, apoiada em suas oito finíssimas pernas, deslocar-se sobre a página impressa, como uma bolha de ar, e ir postar-se na margem superior da página, donde ficou a observar-me.
Estava, sem dúvida alguma, assustada e surpresa, pois, nascida e criada dentro de um dicionário, jamais vira um ser humano. De minha parte, estava também surpreso, pois jamais imaginara a existência de semelhante indivíduo habitando minha casa, oculto entre as páginas de um de meus livros. E de novo me veio à mente aquela pergunta:
-Para que servem as aranhas?
E ela, ou por ter adivinhado o que eu pensara ou por ter me ouvido balbuciar a pergunta, respondeu:
-Quer parar de buscar finalidade em tudo?! E você, para que serve? E este planeta, e o Sol e as galáxias, para que servem?
Para evitar polêmica, tratei de fechar o livro, cuidadosamente, de modo a não machucá-la.

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