Afinal, não é essa a tarefa desses bichos: fazer armadilhas para pegar as moscas e comê-las? |
Aqui em casa, de vez em quando, surge uma lagartixa, que me acostumei, desde menino, a chamar de osga. Ela é branca, às vezes transparente e, de repente, aparece grudada à parede da cozinha, quando acendo a luz. Na época em que meu gatinho ainda vivia, ele era o primeiro a se dar conta da presença da osga e logo subia no armário da pia, de olhos fixos nela; e miava, pedindo minha ajuda para capturá-la.
Em vez disso, tratava de tirá-lo de lá, apagava a luz e fechava a porta da cozinha. Ele insistia, miando diante da porta fechada, mas eu fingia que não estava entendendo. Certa noite, surpreendi-o na sala, dando um bote numa lagartixa que se aventurara a passear pela casa. Corri em socorro dela, que já perdera o rabo, e a levei de volta à área de serviço, que é o lugar de lagartixas.
Depois que meu gato morreu, o aparecimento de uma ou outra osga, seja na cozinha ou onde for, já não me causa a mesma aflição. Mas, faz duas semanas, a empregada encontrou um filhote delas, morto no corredor, entre a sala e o escritório; devo tê-lo atropelado, involuntariamente. Fiquei penalizado -e não é que, dias depois, me surge outro filhote no chão do banheiro? Tentei pegá-lo para evitar que tivesse a mesma sorte do irmão, mas ele, rebolando, correu, entrou no ralo e sumiu. Melhor assim.
É um problema a existência desses bichos delicados, que podemos chamar de animais domésticos, embora habitem nossa casa. São, de fato, moradores clandestinos, que surgem não se sabe de onde e nos surpreendem. Já escrevi sobre eles -não sobre as lagartixas, mas sobre as aranhas. Contei, numa crônica, o flagra que dei numa delas, no meu escritório -mas noutro apartamento, da rua Visconde de Pirajá. Era uma tarde de domingo e, enquanto o pessoal se divertia na praia, estava ela ali, pertinaz, cuidando da vida: sob o peitoril da janela, onde armara sua teia, acabara de capturar uma mosca incauta, que, sem perda de tempo, empacotava em sua teia.
Assistia eu àquilo, sem tomar partido, e a segui com os olhos quando empurrou a presa empacotada para o centro da teia, onde começou a devorá-la. Esse espetáculo feroz e silencioso ocorria em meu escritório, numa tarde linda de domingo, em Ipanema, sem que ninguém, afora eu, se desse conta. Enquanto lá fora, pensei, passam os ônibus e as pessoas cruzam a rua com barracas de praia nos ombros, está esta aranha aqui, sinistra, a devorar uma pobre mosca. Mas, afinal, não é essa a tarefa das aranhas: preparar armadilhas para capturar as moscas e comê-las?
Não sei se as moscas têm família, pois, se tiverem, será terrível para os parentes verem um membro do grupo ser devorado por um pequeno monstro de muitas pernas e mente ardilosa. Já eu, que nem mosca sou, nem aranha, mantenho-me como observador imparcial da tragédia.
Depois, mudei de casa e de país. Contra minha vontade, andei pelo mundo, como uma mosca a fugir das aranhas, até que um dia, já sob o regime democrático, deparo-me com uma aranha ao abrir o "Dicionário de Filosofia", de José Ferrater Mora. Era uma delas bem menor que uma mosca e que deveria alimentar-se de bichos minúsculos. Mas, naquele momento, não pensei nisso, tão surpreso fiquei ao vê-la, levíssima, apoiada em suas oito finíssimas pernas, deslocar-se sobre a página impressa, como uma bolha de ar, e ir postar-se na margem superior da página, donde ficou a observar-me.
Estava, sem dúvida alguma, assustada e surpresa, pois, nascida e criada dentro de um dicionário, jamais vira um ser humano. De minha parte, estava também surpreso, pois jamais imaginara a existência de semelhante indivíduo habitando minha casa, oculto entre as páginas de um de meus livros. E de novo me veio à mente aquela pergunta:
-Para que servem as aranhas?
E ela, ou por ter adivinhado o que eu pensara ou por ter me ouvido balbuciar a pergunta, respondeu:
-Quer parar de buscar finalidade em tudo?! E você, para que serve? E este planeta, e o Sol e as galáxias, para que servem?
Para evitar polêmica, tratei de fechar o livro, cuidadosamente, de modo a não machucá-la.