Nada é mais valorizado na música do que
a "autenticidade" – um conceito que tem
muito de empulhação
Sérgio Martins
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Na música popular de hoje em dia, nada é mais importante do que a "autenticidade". Ela é a medalha que todos fazem questão de ostentar no peito, sejam roqueiros ou caipiras, sambistas ou cantores de hip hop. O raciocínio é simples: o oposto da autenticidade é a armação – uma arapuca comercial construída para separar as pessoas de seu rico dinheirinho. Como tantos raciocínios simples, no entanto, esse deixa a desejar. Um excelente livro sobre o tema acaba de ser lançado nos Estados Unidos. Chama-se Faking It (algo como Falsificando) e foi escrito por Hugh Barker e Yuval Taylor, críticos culturais com um bom conhecimento das engrenagens do mercado fonográfico. Seu objeto de estudo é a música americana, dos velhos cantores de blues ao Nirvana, mas suas idéias também se aplicam ao Brasil. O livro mostra como a autenticidade, com freqüência, nada mais é do que uma construção.
Barker e Taylor observam que há vários tipos de autenticidade. No caso da música brasileira, pode-se dizer que a palavra é aplicada em três sentidos. Ela descreve, primeiro, o apego a raízes culturais. É em nome disso, por exemplo, que muitos fãs do gênero sertanejo preferem Tonico & Tinoco, que só tocam viola, a Zezé Di Camargo & Luciano, que têm guitarra em sua banda e usam roupas importadas. Daí também o entusiasmo atual pelos velhos sambistas do morro carioca. Outro tipo de artista autêntico é aquele que rasga as entranhas e expõe seu "verdadeiro eu" (com perdão da expressão). Seus ícones máximos são Renato Russo e Cássia Eller. Finalmente, vem a autenticidade como rejeição ao sistema. Ela é um atributo dos que "não se vendem" no confronto com uma indústria cultural que, supostamente, corrompe tudo o que toca. O roqueiro Lobão e os barbudos do Los Hermanos, grupo que acaba de se separar, são exemplos disso.
Dentre os muitos casos explorados pelo livro Faking It, um dos mais emblemáticos da maneira como a autenticidade pode ser forjada é a do cantor Leadbelly, que, na década de 1930, se apresentava com roupa de presidiário tocando um repertório de música negra "primitiva". Leadbelly não tinha passagem pela cadeia. Seu gosto musical, além disso, era refinado e cosmopolita. Mas ele encarnou tão bem o papel que seu empresário lhe havia inventado que se tornou um bastião do blues tradicional. O Brasil tem histórias parecidas. Como a de Moreira da Silva, ex-motorista de ambulância que se tornou o protótipo do malandro carioca, cantando canções sobre o morro e sobre brigas de navalha nas quais ele nunca tomou parte.
Esses são casos gritantes, mas quase toda carreira musical de sucesso tem uma pitada de invenção. Coube, por exemplo, ao baterista Marcelo Yuka, um rapaz da classe média carioca, transformar o cantor Falcão num porta-voz das "comunidades" faveladas do Rio de Janeiro. Antes de cantar no grupo O Rappa, nem o cabelão com tranças era marca de Falcão: ele usava um penteado comportado. Renato Russo foi outro mestre do cálculo. O desnudamento de suas emoções nunca foi até as últimas conseqüências. A homossexualidade, por exemplo, foi um tema com que até o fim ele não lidou abertamente em suas músicas. Leitor assíduo de biografias de ídolos pop, Renato Russo planejava cuidadosamente cada passo em sua carreira.
O tipo mais pernóstico de "autenticidade" é aquela dos músicos que se dizem alheios à celebridade e às maquinações perversas do mercado – aqueles que se dizem simples, desencanados, comprometidos somente com a arte. Depois de estourar com uma das músicas mais desmioladas da história do pop, Anna Julia, o grupo Los Hermanos assumiu essa atitude de pureza, rejeitando a música comercial e compondo canções intricadas para guitarra e tuba. É claro que eles estavam jogando para uma platéia bem definida: a da garotada esquerdóide que não quer ser "colonizada" pela indústria cultural.
Uma das conclusões de Faking It é que a autenticidade é um conceito extramusical, que nada diz sobre o valor intrínseco de um disco ou de uma canção. E, na medida em que se torna fetiche, ela desvia a atenção de outros valores artísticos tão ou mais relevantes. Como, por exemplo, o artifício e o fingimento – aqueles mesmos que o escritor irlandês Oscar Wilde transformou em princípios máximos da estética em seu libelo de 1889 contra a autenticidade, o saboroso A Decadência da Mentira.
Foto Renato Russo Jorge Rosenberg/Montagem sobre fotos de divulgação/Daniel Benassi