Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 05, 2007

Bento XVI, um papa de transição


O pontífice que chega ao Brasil não deve protagonizar
uma inflexão nos rumos da Igreja. Mas ele pode fazer com
que os bispos participem mais das decisões do Vaticano


Mario Sabino

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Há homens talhados para brilhar no palco e outros que se amoldam melhor aos bastidores. Da primeira extração, João Paulo II foi um gigante na arte de galvanizar multidões. Em sua primeira fala como papa, ele levou ao delírio os fiéis que se espremiam na Praça de São Pedro, em Roma, ao proclamar: "Não tenham medo!" – um recado aos cidadãos, católicos ou não, então oprimidos pelas ditaduras comunistas no Leste Europeu, entre os quais os seus compatriotas da Polônia. Até se tornar Bento XVI, em 2005, num conclave cuja brevidade surpreendeu os vaticanistas e revelou a escassez de cardeais com estatura intelectual e política para ascender ao Trono de Pedro, o alemão Joseph Ratzinger parecia destinado às coxias da Cúria Romana – de onde, vez por outra, assomaria à cena apenas para rugir (de modo figurado, porque a voz do panzer tem a doçura da de um pároco de aldeia) contra quem desafiava os dogmas reafirmados pela Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida por ele. Mas eis que, como única opção tanto terrena como do Espírito Santo, Ratzinger sucedeu a João Paulo II. E lá apareceu, no balcão da Basílica de São Pedro, a figura franzina a vestir a túnica papal, numa tarde fria da primavera romana. "Um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor", definiu-se, num anúncio sem pompa nem entusiasmo para tamanha circunstância. Passados dois anos de pontificado, o papa Bento XVI fará sua primeira viagem transoceânica. Ele desembarcará no Brasil nesta quarta-feira, 9, e permanecerá no país até domingo 13. A visita se restringirá a São Paulo. Os compromissos principais do papa serão a missa de canonização de frei Galvão, o primeiro santo 100% nacional, na sexta-feira 11, e a inauguração da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, horas antes de sua partida.

Os brasileiros que esperam ser "energizados" pela presença de Bento XVI (os depoimentos televisivos são abundantes nesse sentido) talvez se decepcionem. Embora se mostre afável e dê a perceber certo contentamento em meio às ovações, ele não adquiriu magnetismo na função e tampouco aprendeu a fazer números para a platéia (recorde-se João Paulo II, em 1997, na sua terceira e última visita ao Brasil, imitando Carlitos com a bengala). Comporta-se realmente como um simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor, transportado quase que compulsoriamente ao palco do Vaticano. "O papa não deve emitir luz própria. Deve ser simples eco da luz de Cristo", disse ele em sua homilia de início de pontificado. Luz pode não ter eco, mas é certo que Bento XVI é o papa do anticlímax. Na audiência aos jornalistas encarregados de fazer a cobertura do conclave que o elegeu, no Auditório Paulo VI, o ambiente festivo desvaneceu-se quando de sua aparição. Ele leu uma mensagem de agradecimento, pediu que todos rezassem um pai-nosso e saiu rapidamente. A única marca que deixou na ocasião foi a de seus sapatos vermelhos, muito evidentes por causa da túnica curta demais, costurada às pressas depois da sua eleição – fato que, consta, o irritou, porque cultiva pequenas vaidades no vestuário (limitadíssimo pelo cargo) e nos acessórios que, de vez em quando, pode exibir. Entre seus pecadilhos está o de gostar de óculos escuros de grife.

AP
Com o primeiro-ministro Erdogan: o turco divulgou um apoio que o papa não deu

Aos 80 anos, Bento XVI é um papa de transição. Ou seja, de um pontificado que não deverá estender-se por muito tempo e dificilmente terá qualquer tipo de efervescência. Não se esperem, portanto, mudanças espetaculares nos aspectos eclesiástico, doutrinário ou político – o que, de resto, não aconteceria ainda que Bento XVI fosse jovem. Não há hipótese, por exemplo, de que o Vaticano relativize seus férreos valores morais, como demonstrou o papa na sua primeira exortação apostólica, ao dizer, entre outras coisas, que o segundo casamento é uma "chaga" social. Se isso resultar – como vem ocorrendo – em sangria de fiéis, paciência. Na visão de Bento XVI, melhor apascentar um rebanho menor, mas que persevera nos mandamentos da Igreja, do que contabilizar um largo número de ovelhas desgarradas. As inflexões radicais são improváveis, mas isso não significa que não haverá mudanças. "Com Bento XVI, ocorrerá uma valorização das conferências episcopais e uma descentralização do poder romano", acredita Giancarlo Zizola, renomado vaticanista italiano.

A necessidade de alguma colegialidade na determinação dos rumos da Igreja, porque é disso que se trata, foi uma das conclusões do Concílio Vaticano II, realizado na primeira metade da década de 60. Desde então, contudo, o que se verificou foi uma maior centralização das decisões. Há que levar em conta que, a pesar na direção contrária à colegialidade, contribuiu bastante a excrescência chamada Teologia da Libertação, que, nos anos 70 e 80, contaminou boa parte do clero latino-americano e uma porção não desprezível das batinas de latitudes temperadas. Como permitir que bispos intoxicados com a mistura de marxismo e catolicismo pudessem interferir nos caminhos da Igreja? Mas, depois da faxina promovida nos quadros eclesiásticos, durante o pontificado de João Paulo II, essa é uma questão resolvida – ainda que, vez por outra, seja preciso puxar a orelha de padrecos como o salvadorenho Jon Sobrino, que insiste na tal Teologia da Libertação. Em março, o Vaticano, sempre vigilante, disparou uma notificação contra Sobrino, na qual afirma que os livros dele trazem "notáveis divergências com a fé na Igreja". Que ninguém pense que o Ratzinger papa é mais permissivo do que o Ratzinger prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

Roberto Setton
Imagem de frei Galvão: a missa de canonização será na sexta-feira


Na abertura da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, prevê-se que Bento XVI retomará o tema da colegialidade e enfatizará os perigos embutidos em visões teológicas alienígenas à doutrina da Igreja. Ganhará muitos aplausos e raros muxoxos entre os bispos brasileiros. É opinião formada de vários deles que a Teologia da Libertação causou um dano tremendo à Igreja no país, inclusive por distanciar a instituição de sua grei. Em referência ao avanço dos pentecostais no Brasil, um dos bispos costuma dizer que, enquanto muitos padres tentavam inculcar a Teologia da Libertação, os fiéis queriam, na verdade, a "Teologia da Prosperidade" – daí também a migração para as hostes evangélicas, que fazem o elogio da riqueza.

Neste biênio de pontificado, Bento XVI cumpriu à risca o que se esperava dele. Só saiu do roteiro quando, em lugar do papa, falou mais alto o erudito. Em setembro do ano passado, em aula magna proferida na Universidade de Regensburg, na Alemanha, para exemplificar como a fé deve andar de mãos dadas com a razão, Bento XVI citou uma frase de Manuel II Paleólogo, imperador bizantino do século XIV: "Mostre-me o que Maomé trouxe de novo e encontraremos apenas coisas más e desumanas, como a ordem para espalhar pela espada a fé que ele pregava". O já ebuliente mundo muçulmano entrou em transe – igrejas cristãs foram atacadas na Palestina e uma freira foi morta a tiros na Somália. Bento XVI tentou contemporizar, dizendo que não era bem assim, muito pelo contrário, e que a frase do Paleólogo havia sido tirada do contexto. As relações com o Islã só baixariam de temperatura depois da visita do papa à Turquia, em dezembro. Na seqüência do encontro com Bento XVI, o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, divulgou que o papa apoiava a entrada do país na União Européia. Não era verdade. O Vaticano calou-se. Manuel II Paleólogo, nunca mais.

Panzer, mas com estilo


Franco Origlia/Getty Images
Com o gorro de veludo e pele de arminho, ideal para dias frios: o último a utilizar o acessório havia sido João XXIII


Paolo Cocco/AFP
A túnica curta realçou os sapatos vermelhos. Bento XVI não gostou, mas a imagem já faz parte de seu inventário

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