Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, março 09, 2007

O etanol e o futuro - JOSÉ SERRA


Artigo
Folha de S. Paulo
9/3/2007

Mesmo como gentis anfitriões, cabe dizer a Bush que a melhor contribuição para o impulso do etanol será derrubar as barreiras

A PASSAGEM do presidente George W. Bush pelo Brasil aqueceu o noticiário e as expectativas a respeito do etanol como combustível do futuro. Isso é proveitoso, pois dá um impulso mundial ao marketing do álcool, biocombustível pouco agressivo ao meio ambiente e que não está sujeito aos mesmos entraves políticos e econômicos que envolvem o petróleo.
Os Estados Unidos, contrariando sua tradicional retórica pró livre-comércio, estão ingressando na era do etanol amparados em regras que obstruem a formação de um mercado mundial de biocombustíveis.
A barreira norte-americana ao nosso etanol vai além da tarifa de 14 centavos de dólar/litro; outro tanto é entregue aos produtores, sob a forma de subsídio. Logo, o tamanho da barreira final é da ordem de 30 centavos de dólar/litro, montante próximo ao custo de um litro do álcool brasileiro. Ou seja, proteção de 100%! A razão é óbvia: a produção norte-americana de etanol, baseada no milho, é muito mais custosa que a nossa, baseada na cana-de-açúcar. Isso ocorre apesar da supervalorização cambial brasileira, que encarece muito as exportações.
Assim, mesmo como gentis anfitriões do chefe de Estado de um país amigo, cabe mencionar ao presidente Bush que a melhor contribuição para o impulso do etanol no seu país e no mundo será derrubar essa barreira, mesmo gradualmente. Claro que há resistências domésticas de produtores e políticos de lá, mas em que país do mundo não as há?
O protecionismo tradicional dos países desenvolvidos não é o único entrave ao funcionamento de um mercado globalizado para o etanol. Os importadores não querem se sujeitar a uma oferta instável. O Japão, por exemplo, não mudará a matriz energética (elevando a 10% a participação do álcool em tanques de gasolina) sem toda a garantia de abastecimento seguro. A atual função de produção da agroindústria da cana, permitindo a mudança do álcool para o açúcar (e vice-versa), segundo as condições de mercado, favorece a incerteza.
O ingresso de capital estrangeiro nos canaviais brasileiros poderá contribuir para maior garantia de oferta do produto no mercado externo, segundo intenção de alguns investidores de focalizar a produção unicamente no álcool. Funcionariam como elemento de estabilização da oferta. Há pelo menos uma convergência entre as intenções de Bush e o Brasil.
Ele quer espalhar a produção de etanol no mundo, menor dependência de um produtor quase único (nós) e maior concorrência na formação de preços. Isso é conveniente para o Brasil, pois ajudaria a desenvolver o mercado internacional para exportações.
De mais a mais, ante as condições de clima, solo e disponibilidade de terras, nem a América Latina nem a África ou a Ásia poderão desbancar o Brasil na linha de frente da produção mundial. E os EUA mal conseguirão acompanhar o crescimento de sua demanda interna projetada, sem chance de virarem grandes exportadores.
Já o Brasil vai continuar a produzir o álcool (e o açúcar) mais barato do mundo. E pode crescer mais ainda. Hoje, há 7 milhões de hectares de cana, mas se sabe existir no país cerca de 90 milhões de hectares adicionais de terras facilmente cultiváveis, das quais 25 milhões adequadas para cana-de-açúcar. Dobrando a produtividade na produção de álcool por hectare em dez anos, com melhoria de rendimento e uso dos restos vegetais, a produção poderia ser multiplicada por oito. Basta investir em tecnologia.
O etanol é um sucesso que os brasileiros têm direito de comemorar, até porque não veio de graça. Os subsídios chegaram a cerca de 30 bilhões de dólares desde os anos 70. Hoje são zero. A tecnologia nacional teve papel importante para a afirmação do biocombustível verde-amarelo. Por exemplo, graças às melhorias genéticas do IAC (Instituto Agronômico de Campinas, do governo de São Paulo), a produção física de cana por hectare aumentou 40% em 20 anos. Hoje há pesquisadores do IAC em Goiás, Tocantins, Alagoas e Minas Gerais tratando de inovações nas áreas da cana.
Em São Paulo, tomou-se iniciativa essencial ao futuro do etanol no Brasil: a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa), que recebe 1% do ICMS estadual, está preparada para coordenar um grande programa de pesquisas sobre o etanol, com iniciativa privada e agências federais, em várias frentes, da tecnologia de máquinas e equipamentos ao desenvolvimento da alcoolquímica, do melhoramento das plantas (mais energia, menos sacarose) à fermentação do bagaço de cana e outros resíduos. O programa inclui pesquisas sobre os impactos sociais e ambientais. O investimento total ultrapassa 150 milhões de reais, a maior parte bancada pela Fapesp.
São Paulo produz quase dois terços do álcool (e do açúcar) do país. A cana ocupa mais da metade das lavouras do Estado (excluídas as pastagens). Trata-se de concentração excessiva. Gera renda, mas acena com os riscos da monocultura. Será preciso investir no aumento da produtividade e fazer alcooldutos, mas levar a expansão adicional dos cultivos a outros Estados.
Acima de tudo, é essencial garantir as condições ambientais que cercam a cana-de-açúcar. Neste ano, São Paulo terá plantado 4,2 milhões de hectares de cana. Em pelo menos 2,5 milhões de hectares (10% do território paulista) as colheitas serão realizadas mediante queimadas! É uma aberração ecológica e um atentado à saúde das pessoas. Será dever de todos nós, governo e não governo, produtores e não produtores, corrigir essa distorção, com coragem, firmeza e sabedoria. Afinal, uma das principais razões de ser do etanol é assegurar um convívio amigável com o meio ambiente.


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