Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 17, 2007

DRAUZIO VARELLA O crime da camisinha

Quanto sofrimento os senhores de aparência piedosa ainda causarão em nome de Deus?

"PRESERVATIVO TEM que ser doado e ensinado como usar", disse o presidente, no Dia Internacional da Mulher. É a primeira vez que um presidente da República faz defesa tão contundente do uso da camisinha em nosso país. Imediatamente, a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou nota: "A posição da Igreja é clara. Sempre o foi. Não mudou nem mudará. Não repetiremos nosso parecer a respeito. O modo de educar nossos adolescentes e jovens não pode ser feito com base na permissividade, incitando-os a um comportamento desregrado".
Assim que surgiram os primeiros casos de Aids, estudos epidemiológicos conduzidos entre homens homossexuais de San Francisco, usuários de drogas injetáveis de São Paulo, prostitutas da Tailândia, caminhoneiros do Quênia e outros grupos de risco demonstraram de forma irrefutável que o preservativo era a forma mais eficaz de evitar a transmissão sexual do HIV.
Baseada nas pesquisas, a Organização Mundial de Saúde passou a recomendar que todos os países promovessem o uso e garantissem o acesso universal aos preservativos.
Na época, o papa, autoridade máxima do catolicismo, pronunciou-se contra a orientação da OMS, com o argumento de que distribuir camisinhas seria incitar os jovens a práticas condenáveis. Segundo ele, havia uma receita infalível para acabar com a AIDS: "Sexo, só depois do casamento, e nunca fora".
Quem pode discordar de Sua Santidade? Se todos os habitantes da Terra acatassem sua prescrição, a epidemia realmente chegaria ao fim.
O problema é que um número absurdo de mulheres e homens tem a mania de manter relações sexuais antes, durante e fora do casamento. Essas pessoas são tão insensíveis aos conselhos do sumo pontífice, que mesmo se ressuscitássemos Hitler, Stálin e Torquemada e os reencarnássemos em diabólica trindade numa única autoridade eclesiástica dotada dos mais incríveis poderes do mundo, ela seria incapaz de convertê-las à fidelidade conjugal e à castidade pré-matrimonial.
Você pode argumentar, leitor, que essa discussão é irrelevante, que o adolescente com a namorada no canto escuro não deixará de colocar a camisinha porque os bispos são contra nem vai fazer uso dela só porque o presidente Lula é a favor. De fato, mas a resposta pronta da CNBB ao presidente é emblemática. Explico por quê.
A força da oposição obstinada da Igreja Católica à distribuição farta e gratuita de preservativos não está absolutamente em sua influência moral ou religiosa sobre seus fiéis, cada vez mais raros e restritos às idades em que a atividade sexual se torna bissexta. O poder dos religiosos está em intimidar os políticos brasileiros.
De que forma? Faça a experiência de visitar um posto de saúde numa cidade qualquer. Pergunte se existe no município alguma estratégia de distribuição de camisinhas. Nos postos em que elas estiverem disponíveis, você ouvirá que são entregues aos que forem buscá-las.
Por que as autoridades fazem corpo mole na hora de fazer a camisinha chegar às mãos dos usuários que mais necessitam dela: os mais pobres, os mais jovens, os que moram mais longe, os usuários de droga, as mulheres que vendem o corpo?
Por uma única razão: os políticos fogem do confronto com a Igreja Católica como o diabo da cruz. Só por causa da distribuição, o prefeito vai se indispor com o bispo? Mesmo que o padre da cidade discorde da orientação dada por seus superiores, como acontece com muitos religiosos sensíveis às agruras das comunidades em que atuam, que força terá para subverter a hierarquia da Igreja?
Levar a sério a opinião dos religiosos a respeito da melhor estratégia para combater a Aids é tão ridículo quanto contratar epidemiologistas para rezar missa e ouvir confissão. Diminuir a velocidade de disseminação do HIV é tarefa para técnicos da mais alta qualidade, capazes de elaborar programas de prevenção baseados em evidências científicas incontestáveis.
A CNBB afronta o presidente da República porque pretende reafirmar para os políticos menos poderosos que sua "posição é clara. Não mudou nem mudará".
Se não mudou nem mudará, pergunto: por quanto tempo a Igreja Católica cometerá o crime continuado de dificultar o acesso dos brasileiros à camisinha, em plena epidemia de uma doença sexualmente transmissível, incurável? Quanto sofrimento humano esses senhores de aparência piedosa ainda causarão em nome de Deus, impunemente?

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