Panorama Econômico |
O Globo |
6/2/2007 |
O embaixador Roberto Abdenur não está apenas correto; está sendo patriótico ao alertar para os riscos, desvios e erros da política externa. Em arrasadora entrevista à revista "Veja", Abdenur denunciou a doutrinação no Itamaraty que não ocorreu "nem na ditadura", segundo disse. Criticou o "antiamericanismo atrasado", a promoção dos diplomatas "alinhados" e defende que se resgate "o profissionalismo" da Casa. Abdenur era um dos "barbudinhos" do Itamaraty na ditadura. Assim eram chamados os diplomatas que, segundo a crítica da época, tinham idéias de esquerda em pleno governo militar. O Itamaraty era criticado por não se alinhar ao pensamento direitista do governo e dar poder a jovens diplomatas que sustentavam posições consideradas de esquerda. Portanto, quando diz "nem na ditadura", sabe o que está dizendo. No começo do regime militar, houve imposição à diplomacia da obsessão anticomunista. A partir do governo Geisel, o Itamaraty passou a ser autônomo para fazer a política externa que considerasse apropriada. Há vários fatos, votos e decisões que mostram isso. Um exemplo: o Brasil foi o primeiro a reconhecer, em 1975, o governo comunista do MPLA, em Angola. Estar acima da conjuntura, estar acima dos governos foi o que sempre deu à diplomacia brasileira a reputação de profissionalismo. É tradição. Foi um barão que construiu as bases da política externa da República. O que o embaixador, que se aposenta após 44 anos de trabalho, diz em alto e bom som é o que se ouve com freqüência entre diplomatas. É absurdo submeter adultos do nível profissional dos diplomatas à exigência de leituras obrigatórias e dirigidas. Se, aos veteranos, essa prática de quartel desrespeita, mais mal faz aos jovens diplomatas em formação. A pluralidade de pensamento é irmã da inteligência. E não se forma um bom quadro formatando o pensamento previamente, impondo ideologias, quaisquer que sejam. "O Itamaraty precisa resgatar o profissionalismo a salvo de posturas ideológicas, de atitudes intolerantes e de identificação partidária com a força política dominante no momento", disse Abdenur. Ele faz uma lista impressionante dos erros da diplomacia do governo Lula: a dimensão exagerada na relação Sul-Sul, desatualizada após a queda do muro de Berlim e a globalização; a posição de que a China é nossa aliada por ser país em desenvolvimento; a incorporação "de chofre" da Venezuela no Mercosul sem negociações prévias, e, sobretudo, o infantil antiamericanismo. Abdenur foi repreendido por ter dito que a China não é aliada, e, sim, nossa competidora em muitos campos. O Itamaraty exigiu que se retratasse, e ele não o fez. Quando foi embaixador em Beijing, até estudou chinês para entender aquele vasto, complexo e misterioso país. Ajudou a construir as bases da parceria entre os dois países. Não é antichinês. Está apenas alertando para o equívoco de pensar que somos aliados num suposto conflito Norte-Sul. Hoje as relações entre Estados Unidos e China são simbióticas: em 2006, os americanos compraram US$290 bilhões e exportaram US$55 bilhões para os chineses. O megassuperávit chinês é aplicado em títulos do Tesouro americano. Ambos os países se entrelaçaram. Qualquer simplificação em relação à China não é um bom caminho; reconhecê-la como economia de mercado foi uma precipitação; ser ingênuo em relação a ela é um erro que pode ser fatal. Ex-embaixador no Equador, Abdenur lembrou que, em países como Equador, Bolívia, Peru, a ascensão das camadas indígenas, sempre excluídas, é um processo democratizante. Mas isso é diferente do fenômeno Hugo Chávez. "Infelizmente, ele está acabando com a democracia na Venezuela." Certos erros produzem prejuízos. As empresas brasileiras estão ampliando suas operações na região para ganhar musculatura no mundo globalizado. O governo deveria negociar marcos que dessem estabilidade a essas relações, deveria exigir respeito aos contratos assinados por empresas brasileiras. Mas é indulgente com governos que rasgam contratos, pois acha que tem que ser fiel a uma difusa irmandade ideológica. Em vez de consolidar os parâmetros do Mercosul, decide pôr para dentro o "companheiro" Chávez sem negociação prévia dos termos da inclusão. O assessor internacional do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, acha que tem que ser assim porque o Mercosul é, antes de tudo, um acordo político. Não é. O nome começa com "Merco". É primeiro comercial e econômico. Primeiro se adensam as relações comerciais e econômicas sem as quais qualquer aliança política é pura retórica. Foi assim que a Europa foi feita: primeiro, o Acordo de Carvão e Aço; depois, Comunidade Econômica Européia; por fim, Europa unida econômica e politicamente, a qual se amplia através de inclusões amplamente negociadas. Ninguém cai de pára-quedas na Europa. O Mercosul começou na discussão para a construção de Itaipu. Após uma dura negociação de três anos, pela equipe do ministro Saraiva Guerreiro, o acordo para o uso hidrelétrico das águas comuns removeu desconfianças. Acordos comerciais fizeram o resto. Os erros produzirão atrasos e perdas de oportunidades, mas a doutrinação é mais lesiva, porque pode afetar a formação de uma geração inteira de diplomatas. |
Entrevista:O Estado inteligente
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