Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 04, 2007

FERREIRA GULLAR Revanche


Vivemos uma espécie de revanche da revolução cubana, que resultou na derrocada das esquerdas e em regimes militares

TENHO ÀS vezes a impressão de que as pessoas esquecem a influência que a Revolução Cubana exerceu sobre o processo político da América Latina, particularmente nos anos 60 e 70.
E, se falo nisso agora, é porque me ocorreu que estamos vivendo uma espécie de revanche daquelas disputas, que resultaram na derrocada das esquerdas e na implantação de regimes militares em vários países.
Os feitos heróicos daquele punhado de jovens liderados por Fidel Castro levaram as esquerdas latino-americanas a acreditar que, enfim, havia sido deflagrado o processo revolucionário que conduziria inevitavelmente ao socialismo.
Tal entusiasmo levou-as a avaliar mal o poder das forças sociais contrárias àquele objetivo, que adquiria significação particularmente inquietante no contexto internacional da época -o da Guerra Fria- que contrapunha o sistema socialista ao capitalista.
Naquele contexto, as esquerdas que, no Brasil e em outros países, clamavam pela reforma agrária e por medidas antiimperialistas, identificavam-se com reivindicações fundamentais e legítimas da sociedade. Por isso mesmo, os regimes militares, que se implantaram então, compreenderam a necessidade de promover o desenvolvimento e atacar os problemas sociais mais urgentes, ao mesmo tempo que reprimiam com violência os adversários.
Alguns desses governos militares lograram equilibrar a situação econômico-financeira e mesmo atingir considerável grau de crescimento, durante algum tempo, como ocorreu no Brasil e no Chile.
Não obstante, as desigualdades não foram eliminadas e, por isso mesmo, concorreram para o desgaste desses governos, carentes de legitimidade institucional.
Mas o fim das ditaduras e o conseqüente retorno à democracia não conduziram ao poder os líderes e os movimentos de esquerda, que se tinham destacado na luta contra os militares. No Brasil, com a morte de Tancredo, assumiu José Sarney, substituído por Fernando Collor, que nenhum papel desempenhara na luta contra o regime autoritário.
Com uma pregação moralista e modernizante, conseguiu eleger-se, mas, sobretudo, porque seu adversário era Lula, um Lula radical, que assustava a maioria do eleitorado. Collor, acusado de corrupção, teve que passar o governo a Itamar Franco.
A essa altura, a inflação alcançava níveis assustadores, o que obrigou uma mudança drástica da política econômica, dando origem ao Plano Real, que elegeria Fernando Henrique Cardoso presidente da República. Este aprofundou a reforma econômica, plantou as bases de uma estabilidade que se manteve até as vésperas da eleição de 2002, quando finalmente Lula alcançou a presidência do país.
Sim, mas não o Lula feroz das eleições anteriores, pois ele terminara aprendendo que, se mantivesse o radicalismo de antes, jamais seria eleito. De qualquer modo, chegava ao poder um líder cuja atuação, em sua origem, inspirara-se no exemplo cubano, do mesmo modo que sua barba e a de seus companheiros inspirou-se nas barbas de Fidel Castro.
Em vários países latino-americanos, naquela época, adotara-se a política econômica, apelidada de neoliberal: a política das privatizações, do superávit primário e dos juros altos para conter a inflação. Naqueles países, como aqui, essa política não foi capaz de reduzir satisfatoriamente as desigualdades sociais, de erradicar a pobreza nem de fazer a economia crescer nos níveis necessários para lhe dar sustentabilidade.
Nos países onde a pobreza é maior e a desigualdade mais aguda, os herdeiros de Fidel chegaram ao poder com um discurso antiamericano, bem próprio dos anos 60-70. Mas, se o discurso é desaforado e radical, a prática se mantém dentro dos limites do regime capitalista, contra o qual, ao contrário do que ocorria naquela época, ninguém se posiciona.
São todos contra Bush e contra a prepotência norte-americana, mas não se ouve nenhum deles clamar contra o capitalismo, o que nos leva a imaginar que, no seu entender, há dois tipos de capitalismo: um mau, que é o norte-americano, e um outro, bom, a favor dos pobres, que pode até ser chamado de "socialismo do século 21".
Mas o que legitima os novos líderes é a explícita determinação de, com a maior rapidez possível, reduzir a desigualdade. Pode ser que as medidas estatizantes por eles adotadas assustem os investidores e retardem a redução da pobreza, mas o avanço nessa direção, com pressa ou sem pressa, é, ao que tudo indica, irreversível.

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