Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 18, 2007

DANIEL PIZA

A rainha e o plebeu

Daniel Piza

Nem parece o mesmo diretor de Ligações Perigosas, adaptação do livro de Choderlos de Laclos. A Rainha, de Stephen Frears, é um filme sem malícia, superficial, descafeinado como pedem os tempos. Tem algumas qualidades, a mais evidente delas a atuação calibradíssima de Helen Mirren, mas opta por não aprofundar nenhuma. Num tom quase documental, conta como teria sido a reação de Elizabeth II à morte da princesa Diana, dez anos atrás, e a relação dela com o então recém-eleito primeiro-ministro, Tony Blair. E conduz os fatos de tal forma que termina fazendo média com ambos.

No início há o contraste. Blair ao telefone de um lado, usando camisa de futebol (Newcastle), numa biblioteca marfim, com móveis modernos e uma guitarra em pé num canto; do outro, a rainha, cercada por couro e veludo, retratos a óleo, madeira escura, etc. Ela se recusa a oferecer o funeral de Diana, por já não ser da família real. Prefere a discrição e apóia a família Spencer por querer um luto privado. Blair, não. Assim como Charles, acha que o dever da família é homenageá-la em fausto público. O autor de seus discursos logo formula a imagem adequada: “Ela era a princesa do povo.”

Frears não é ingênuo a ponto de achar que são duas atitudes desprovidas de interesse. A rainha jamais gostou de Diana, de sua exposição pública, e as circunstâncias da morte só acentuavam isso. Blair quer embarcar na onda de comoção e parece decidir tudo ao vento das manchetes dos jornais. Tais atitudes são apenas insinuadas. Em seguida, contra a opinião de sua mulher e de seu ghost-writer, Blair percebe que deve se aproximar da rainha. Entre os argumentos que usa para convencê-la, está o de que as pesquisas de opinião mostram que um quarto dos britânicos abriria mão da monarquia. Nesse momento, não conseguimos deixar de pensar em quanto eles, ao final, têm em comum: a rainha e o plebeu vivem de aparências.

Mas Frears - que, pensando bem, amaciou o desfecho do livro de Laclos - não segue por aí. O que ele escolhe não mostrar é o problema. Blair, afinal, não obteve a “terceira via” sonhada; no filme, parece estar sempre fazendo a coisa certa. A rainha, que em certos momentos faz muxoxos, infantilizada, é apenas alguém que não teria percebido “a mudança de valores” encarnada por Diana. Esta, a celebridade “fashion” engajada em causas humanitárias, vítima do marido traidor - como se não soubesse de amantes antes de casar e como se ela mesma não tivesse amantes - e dotada de compulsão sincera para chorar diante das câmeras, não é menos que uma santa moderna. E até Charles, o bonachão cujos diálogos com Camilla Parker-Bowles fizeram a alegria dos tablóides, só está com medo do ódio popular.

Tudo caminha para a conciliação, que torna menores os defeitos de cada um e aponta para a harmonia entre tradição e renovação, um meio-termo satisfatório entre o institucional e o efêmero. Admiradores da monarquia constitucional inglesa, como os brasileiros Joaquim Nabuco e Machado de Assis, sonhavam justamente com uma elite assim, com espírito democrático, e não enredada em seus pomposos privilégios. Nós, republicanos, também gostamos dos ingleses pelo modo como combinam bom senso com humor irônico. Mas ninguém precisa acreditar que Elizabeth II e Tony Blair sejam seus melhores representantes.

RODAPÉ
Um tom conciliatório aparece também no ensaísta inglês Alain de Botton, de quem acabo de ler o mais recente livro, The Architecture of Happiness (Pantheon). Ele tem obsessão pelo tema da felicidade, mas nunca chega a definir o que quer dizer com ela; ainda que afirme que existem modos diferentes de ser feliz, nunca é claro sobre aquele ao qual se refere quando usa a palavra. O livro é sobre como os ambientes - casas, igrejas, prédios comerciais - influem em nossa sensação de bem-estar, ao nos lembrar daquilo a que aspiramos. É como se toda forma pudesse implicar uma noção de “virtude”.

Entre os méritos, o livro é escrito em tom de ensaio - essa boa e velha tradição inglesa que nasceu do francês Montaigne -, conjugando com leveza idéias próprias e citações informativas, livre de rodapés e jargões. Botton, que se fosse brasileiro seria atacado por escrever sobre assuntos variados (Proust, viagem, filosofia, etc.), vai a exemplos menos óbvios, tratando de obras do Japão à Holanda, dos EUA ao Sri Lanka. Do Brasil, cita, claro, Oscar Niemeyer e seu projeto de unir racionalidade modernista com sensualidade brasileira. E faz boas frases como ao dizer que a elegância surge quando a arquitetura “tem a modéstia de não chamar atenção para as dificuldades que superou”, pois é “um ato de resistência com graça e economia”.

Para Botton, a função tem força na arquitetura, mas há várias formas de prestar a mesma função. Ele não defende nenhum estilo em particular. Vê a arquitetura como experiência; logo, a interpreta como uma criação aberta ao tempo e lugar. Na segunda metade do livro, porém, defende o equilíbrio entre ordem e complexidade, mediado pela elegância, pela simplicidade. Seu gosto é pelo clássico, ainda que em sintaxe moderna, porque é ele que encarna sua idéia de beleza como consolo, como promessa de um ideal. Em nenhum momento esmiúça essa leitura, porque dedica só um parágrafo a cada construção. É como se esquecesse que a beleza é, muitas vezes, incômoda, não porque contrasta com nossa realidade, mas porque nos aponta suas ambivalências.

ESPIRAIS HUMANISTAS
Um dia alguém ainda vai lançar uma Lei do Jornalismo Cultural Brasileiro: nenhuma publicação cultural de qualidade vende mais que 30 mil exemplares mensais por mais que cinco anos.

MINICONTO
Ela gostava de livros, ele gostava de esportes. “Opostos se complementam”, pensaram e casaram. Mas depois de ela explicar que Mozart não era chocolate, Proust não era piloto, Nelson Rodrigues não era treinador, Picasso não era marca de carro e Van Gogh não era banco, foram separados para sempre.

POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Para quem dizia que o poder público não tem a obrigação de fiscalizar o trabalho de um consórcio privado, como se isso fosse um gesto anticapitalista - como se o Estado não pudesse e não devesse interferir no caos histórico da cidade -, deve ter sido uma decepção saber dos inúmeros problemas em toda a extensão da Linha 4 do metrô, detectados depois do desabamento da cratera da estação Pinheiros. José Serra precisou suspender as obras. A turma do laissez-faire (ou “laissez mal-faire”) precisa suspender a ingenuidade.

Enquanto isso, a patota do Estado intervencionista não reage ao aumento de gás promovido pela Bolívia; afinal, dizia que a nacionalização de Evo Morales não teria esse tipo de conseqüência. O governo Lula se gaba de passar a mão na cabeça de países pobres, como se o Brasil fosse rico e como se, à maneira dos palestrantes do moribundo Fórum Social, o perdão de dívidas fosse a solução para o subdesenvolvimento. Deve ser aquilo que a “zelite” acadêmica, que põe ideologia até em questões lingüísticas, entende por “socialismo democrático”.

POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Outra polarização grosseira se viu na questão da idade penal. Toda vez que acontece um caso chocante como o do menino João Hélio, a comoção é seguida de discursos em defesa de pena de morte, linchamento, lei do Talião, “vamos fazer com eles o que eles fizeram com o menino”. E aí se fala em redução da maioridade penal para qualquer tipo de crime, o que mexeria com cláusula pétrea da Constituição. Do outro lado, há os que dizem que esses crimes deixarão de existir quando a pobreza acabar, quando houver educação, etc. Ou, como César Maia, que não há mais lugar nos presídios...

Muitas coisas precisam ser feitas, a começar pela reforma e limpeza do sistema prisional. Mas entre elas está a de ter uma legislação que preze por um valor em si, a Justiça, cuja noção simplesmente - por qualquer parâmetro - não combina com o absurdo de liberar de volta à sociedade um psicopata adolescente depois de dois anos de detenção. Nos países ricos, onde crimes hediondos - ora, ora - também acontecem, eles podem ser punidos já a partir dos 10 (Inglaterra), 13 (França) ou 14 (Alemanha) anos de idade, em algumas situações pegando prisão perpétua. São Voltaire, zelai por nós.

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