Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, novembro 01, 2006

O câmbio e a navalha de Ockham- ALEXANDRE SCHWARTSMAN




Folha de S. Paulo
1/11/2006

No regime brasileiro, a taxa de juros é usada para controlar a inflação, não a taxa de câmbio

Os que acreditam que a apreciação do real nos últimos tempos resultou da diferença entre os juros domésticos e externos enfrentam agora um sério problema: desde meados do ano passado, o diferencial de juros caiu à metade e, a despeito disso, a moeda não se desvalorizou. Será que estamos num mundo bizarro, onde certas leis econômicas valem num sentido e não em outro, ou, de forma mais simples, trata-se apenas da habitual mistura de desprezo pela teoria combinado à ausência de investigação empírica? Seguindo o venerável princípio da navalha de Ockham, creio que a alternativa mais simples é também a verdadeira.
Comecemos pela diferença entre o que dizem os modelos econômicos consagrados e sua interpretação mais pedestre. Diz a boa teoria, apoiada pelos testes empíricos, que o diferencial de juros, ajustado pelo risco, deveria corresponder à depreciação esperada da moeda. Assim, quando esse diferencial aumenta, a cotação corrente da moeda deve ficar mais distante de seu valor esperado, aumentando a expectativa de desvalorização; quando o diferencial se reduz, a cotação à vista deve se aproximar da taxa esperada para o futuro, reduzindo a expectativa de depreciação.
Alguns interpretam essa relação sem levar em consideração o comportamento das expectativas sobre futuras taxas de câmbio, omitindo que a relação se dá entre o diferencial de juros e a desvalorização esperada da moeda, não necessariamente seu nível corrente. O aspecto central da teoria de formação de taxa de câmbio, conhecido desde meados dos anos 70, não tem sido considerado na maioria das análises do tema.
Também tem sido omitido o papel do risco-país nesse processo, cujas variações corresponderiam a mudanças da taxa externa de juros: um aumento do risco tende a depreciar a moeda, enquanto uma redução leva à apreciação da moeda, sempre em relação à expectativa da taxa futura de câmbio.
Falta, por fim, quantificação ao debate. No entanto, é possível mostrar, por meio de um trabalho estatístico cuidadoso, em que medida juros e risco-país afetam a desvalorização esperada. E os resultados dos testes mostram que, de fato, a desvalorização esperada no Brasil reage exatamente como prevê a teoria em resposta a mudanças do diferencial de juros e do risco-país.
Assim, voltando à questão inicial, por que a substancial redução do diferencial não levou à depreciação do real? Por um lado porque o risco também caiu significativamente, reduzindo o impacto da queda do diferencial de juros. Segundo, porque o câmbio esperado -respondendo às boas perspectivas do balanço de pagamentos- se apreciou, como é possível inferir a partir das expectativas coletadas pelo Banco Central. Isso reduz a desvalorização esperada e restringe a depreciação do nível corrente da moeda. Desconhecer esses fatos limita o entendimento dos motivos pelos quais a moeda tem se mantido estável, a despeito da forte queda de juros domésticos e de uma elevação considerável dos juros internacionais.
No entanto, se a taxa de câmbio não se depreciou mesmo com juros menores, seria ainda possível indagar por que o BC não se aventuraria a baixar adicionalmente os juros, com vistas a compensar os efeitos acima descritos e tentar forçar a desvalorização do real. A resposta para isso envolve a compreensão de dois temas intimamente ligados.
O primeiro é que, no regime brasileiro, a taxa de juros é usada para controlar a inflação, não a taxa de câmbio. Só por um acaso extremamente improvável a taxa coerente com a inflação na meta seria aquela congruente com o nível de câmbio que demiurgos apregoam como o "correto" para o país. Ainda assim, qualquer perturbação, por menor que fosse, destruiria essa precária coincidência.
Ademais, mesmo que o BC passasse a perseguir uma meta de taxa de câmbio, abandonando a meta de inflação, o próprio aumento da inflação trataria de corroer essa taxa, como tão bem mostram as experiências do Brasil (no passado) e da Argentina (no presente). Na teoria e na prática, ter uma meta para a taxa nominal de câmbio não implica nenhuma garantia sobre o nível da taxa real de câmbio que irá vigorar. De fato, o preconceito contra a teoria e descaso pelos fatos proporcionam, como seria de esperar, uma base muito pobre para recomendações de política econômica.

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