O Globo |
27/6/2006 |
Pela quantidade de e-mails, quase todos de protesto contra meu último artigo, pude ter uma idéia de como é mesmo difícil reformar a Previdência. Na raiz de tudo, uma confusão. O termo "contribuição", para mim, não tem nada de dúbio: é algo que eu faço para que alguma coisa maior se realize ou se resolva. Diz-se, por exemplo, que um grande escritor "contribuiu" muito para o brilho da literatura brasileira. Nos dicionários, além deste, há significados muito precisos: "Parte pertencente a cada um nas despesas do Estado ou em uma despesa comum." No entanto, quando se fala em aposentadoria, "contribuição" vira sinônimo de poupança. "Eu contribuí a vida toda, agora quero o que é meu." Mas não é isso. Nosso sistema, como o de grande parte dos países, baseia-se na solidariedade entre os que estão trabalhando e os que já se aposentaram. O que eu pago hoje não fica depositado em meu nome, rendendo juros e correção, para que, no futuro, eu desfrute do que poupei. Não, tudo o que recolho ao INSS se destina ao pagamento daqueles que já se aposentaram (ou daqueles que necessitam de ajuda temporária, como o auxílio-doença). Quando chegar a minha vez, os que então estiverem na ativa, trabalhando, pagarão por mim. Zelar para que haja um equilíbrio nesse sistema é interesse de todos, portanto. Para que a discussão flua melhor, vou detalhar aqui o que houve com as aposentadorias do INSS e, no próximo artigo, com as do setor público. Em 1998, na reforma da Previdência, o governo não conseguiu estabelecer uma idade mínima para o setor privado: então ministro do planejamento, o deputado Antônio Kandir voltou à Câmara apenas para aprovar a emenda e, na hora de votar, errou, e a idade mínima foi rejeitada por apenas um voto. A quem já tina 30 anos de contribuição (homens) e 25 (mulheres) foi resguardado o direito de requerer aposentadoria proporcional. Os que ainda não tinham alcançado essa condição mantiveram também o direito de se aposentar mais cedo, mas passaram a ter de trabalhar mais 40% sobre o tempo que, em dezembro de 98, ainda faltava para que pudessem requerer o benefício: se, em 98, um cidadão tivesse 20 anos de contribuição, pelas regras antigas ele poderia requerer aposentadoria proporcional se contribuísse por mais dez anos, em 2008; depois da emenda, passou a ser obrigado a pagar um pedágio de 40%, só podendo agora se aposentar em 2012. Para mitigar o problema da falta de idade mínima, em 1999, o governo conseguiu aprovar o chamado fator previdenciário: quanto mais jovem for o beneficiário e maior a expectativa de vida do brasileiro, menor será o benefício. Mesmo assim, a idade média no momento da aposentadoria se mexeu pouco: em 99, era de 54, para homens, e 50, para mulheres; agora, é de 57 e 52, respectivamente. A aposentadoria por idade é também algo de surreal. Qualquer um pode se aposentar nessa idade, desde que tenha contribuído por 12,5 anos (em 2011, o tempo mínimo será de 15 anos). Presume-se que alguém que, aos 65, tenha contribuído por tão pouco tempo seja de baixa renda, tendo vivido na informalidade a maior parte da vida. Ocorre que a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) estabelece que todos aos 65, com renda per capita inferior a um quarto de salário mínimo, têm direito a um benefício de um salário mínimo (e a quem não tem comprovante de renda, basta uma autodeclaração, segundo a lei 2.720). O resultado é que grande parte dos beneficiários tem renda muito superior à exigida. As duas leis acabam sendo incongruentes. Uma estimula o vínculo com o INSS, impondo um tempo mínimo de contribuição; a outra abre a porteira, sem controles. Quem é que vai querer contribuir por 15 anos para ter uma aposentadoria com valor próximo ao do mínimo, se sabe que aos 65 anos terá um benefício parecido mesmo sem contribuir? E há ainda um enorme problema: a aposentadoria rural. Existem dois grupos: os trabalhadores rurais, com carteira assinada e os que trabalham a própria roça, não importando se são proprietários, posseiros, meeiros, arrendatários. Segundo a PNAD, existem 3,5 milhões de trabalhadores rurais com carteira assinada, mas apenas 31% deles contribuem. Os trabalhadores com pequeno roçado devem contribuir com 2,1% do valor da produção negociada, mas a obrigação de recolher ao INSS é de quem compra, se o comprador for uma empresa. Um cálculo grosseiro estima que a sonegação no campo gira em torno de 50%. Como na prática é impossível saber quem contribuiu ou não, trabalhadores rurais acabam se aposentando por idade, aos 60 anos (homens) e 55 (mulheres), desde que provem que viveram da terra por 12,5 anos (serão 15 anos a partir de 2011). Hoje, há 7,6 milhões de trabalhadores rurais na ativa e 7,15 milhões deles aposentados. Todas as contribuições recolhidas no campo são suficientes para fazer frente a apenas 13% das despesas com aposentadorias rurais. Por tudo isso, o equilíbrio não existe. O déficit do INSS é de R$ 37,8 milhões.Todas as medidas adotadas se mostraram pouco eficazes: em 99, dizia-se que o déficit do INSS, então em 1% do PIB, ia se manter estável: hoje, já está em 2% e crescendo. As despesas com o INSS eram de 2,5% do PIB em 88 e não pararam de crescer: hoje chegam a 7,4%. A rigor, faltaria já dinheiro para pagar aos aposentados, mas isso não acontece, porque o governo absorve o déficit, tirando dinheiro de outros setores. Praticamente 60% de todas as despesas não financeiras do governo se destinam a fazer frente à Previdência. Sobram apenas 8% para investir em tudo o mais (educação, reforma agrária, segurança etc.) e 2,9% para infra-estrutura, as obras sem as quais nosso crescimento econômico continuará pífio. A eleição é o momento para se discutir a saída. Mas quem tem coragem? |
Entrevista:O Estado inteligente
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O problema da Previdência Artigo - ALI KAMEL
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