Houve tempo em que todo brasileiro era especialista em falar mal do
juiz. Este ano, a ênfase é outra; talvez devido à quantidade de
especialistas que não se cansam de dissecar a Copa na TV e nos
jornais, parece que a população nacional — 90% dos machos e boa parte
das fêmeas — deixou de lado os sopradores de apito: agora, somos
sapientes comentaristas de técnicas, artes e até sutilezas
psicológicas do futebol mundial. É melhor do que ficar remoendo as
desventuras nacionais, pelo menos enquanto durar a festa e — oremos,
irmãos — até o apito final e a chegada triunfal dos últimos heróis de
nossa geração.
Deus, que lê nossos jornais religiosamente, como tudo que Ele faz,
bem sabe quanto precisamos de ídolos merecedores de razoável respeito.
Justificam-se, portanto, essas semanas monomaníacas. Mas há limites.
Alguns deles estão sendo absurdamente desrespeitados.
Há quem não pode deixar de trabalhar, com Copa ou sem Copa. Nos
serviços médicos, por exemplo. No entanto, verificando apenas a
situação do Rio, descobrem-se abusos e exageros. Todas as consultas
no Hospital dos Servidores do Estado (HSE) foram canceladas em dias
de jogos do Brasil. Idem nos postos de saúde e ambulatórios de
hospitais públicos da cidade. Os doentes que não suportam voltar para
casa e rezar têm a opção de buscar socorro nas emergências — que,
nesses dias ficam, claro, superlotadas. Se o atendimento é o que se
sabe em tempos normais, faça-se uma idéia de a quantas tem andado
nesses dias.
Na terça-feira em que jogamos contra Gana, o HSE dispunha apenas de
médicos de plantão. E um cartaz informava que não haveria consultas
depois de 11 horas. Afinal, médicos, enfermeiros etc. também são
brasileiros e, na visão oficial, seria crueldade extrema negar-lhes a
visão maravilhosa daquele gol de Ronaldo no comecinho do jogo.
Foi decretado, pelo visto, que, quando a bola correr na Alemanha,
todos os funcionários da área de saúde que não estejam de plantão
serão — automática e miraculosamente — desnecessários. Mais de mil
consultas, segundo foi informado a um vereador, foram remarcadas.
Idem no Getúlio Vargas, que é estadual. Imagine-se o aluvião de
pacientes depois da Copa.
Hospitais municipais como Souza Aguiar e Miguel Couto mantiveram o
atendimento de emergência, mas suspenderam consultas nos
ambulatórios. A ninguém ocorreu que consultas em hospitais públicos
podem não ser assuntos de vida ou morte mas são direitos do cidadão,
com ou sem Copa do Mundo.
A Secretaria municipal de Saúde justificou o adiamento de consultas
alegando que os pacientes costumam faltar em dias de jogos do Brasil.
Pode ser. Mas só falta quem não precisa. Quem está passando mal,
principalmente cidadãos idosos e com dificuldade de se locomover,
provavelmente receberia como graça dos Céus um dia de ambulatório
vazio e atendimento rápido.
Se possível, com uns gols do Ronaldo — mas logo depois de resolvido o
problema de saúde.