Baseado em parecer da Advocacia Geral da União (AGU), que transgride
de forma grosseira a legislação em vigor, o presidente Lula usou sua
caneta na semana passada para tentar acabar de vez com a autonomia
das agências reguladoras, subordinando suas decisões aos ministérios.
“Este parecer é um acinte ao Estado de Direito, é retroceder ao
regime autárquico da década de 50 e uma tentativa autoritária e
ultrapassada de centralizar poder”, adverte o professor de Direito
Regulatório da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Alfredo Ruy Barbosa,
bisneto do famoso jurista baiano. A autonomia das agências é
precondição para reduzir o risco regulatório (portanto, o preço de
tarifas pagas pela população) e para tranqüilizar investidores
interessados em aplicar seu dinheiro em serviços públicos e infra-
estrutura, no Brasil. No governo Lula, esses investimentos encolheram
drasticamente e uma das razões mais fortes é justamente o temor de
interferências políticas nas decisões das agências, que Lula busca
agora oficializar, ao subordiná-las a ele e a seus ministros.
O parecer da AGU foi provocado pelo Ministério dos Transportes, a
quem a empresa Tecon (que administra o porto de Salvador) interpôs
recurso administrativo contra uma decisão da Agência de Transportes
Aquaviários (Antaq). Enquanto o ministério interpretou caber tal
recurso, a Antaq entendeu ser apropriado apenas o recurso judicial. O
conflito - inédito, porque nunca antes houve recurso ao ministério -
foi parar na AGU, que acabou acatando, no caso específico, a decisão
da Antaq. Porém, de forma premeditada e ardilosa, aproveitou o
conflito para tentar golpear a autonomia. “O pressuposto necessário
da premissa é a existência incondicional da supervisão ministerial
como traço essencial do regime presidencialista vigente”, define o
texto assinado pelo consultor-geral da AGU, Manoel Lauro Volkmer de
Castilho, ao encaminhar o parecer para o presidente Lula arbitrar.
Castilho negou-se a falar com a articulista.
Submeter o caso à arbitragem do presidente da República é indício
claríssimo da intenção de criar não um precedente isolado, mas a
própria jurisprudência da questão, dando poder aos ministérios para
alterar ou até revogar decisões das agências. “Por que buscar a
assinatura do presidente para uma questão simples, sem relevância? A
única explicação é o propósito de criar jurisprudência para orientar
casos futuros”, afirma o advogado Paulo Valois Pires, que atua na
área de direito regulatório e tem clientes em conflito de interesses
com agências. “Com esse parecer na mão, não vacilarei em entrar com
recurso administrativo no Ministério das Minas e Energia para revogar
decisão da Agência Nacional do Petróleo que desagrade a meu cliente”,
exemplifica Pires.
No mundo inteiro as agências se caracterizam por: 1) Independência de
ação; 2) análise técnica, e não política; 3) decisões sempre
colegiadas. Essas três regrinhas têm o sentido de proteger a
população e o serviço público a ela prestado contra interferências de
natureza político-eleitoral de governantes, sempre conflitantes com o
interesse da população. No Brasil, a legislação que criou as agências
não deixa dúvidas em garantir a autonomia e define que elas são
vinculadas, e não subordinadas aos ministérios, como quer o consultor-
geral da AGU (e o leitor sabe muito bem o quanto ministros são
veículos de interesses político-eleitoral em nosso país). É neste
sentido que o parecer da AGU ignora e transgride a legislação.
Ao concluir sua argumentação, Castilho resume: “Em suma, não há
suficiente autonomia para as agências que lhe possa permitir ladear,
mesmo dentro da lei, as políticas e orientações da administração
superior, visto que a autonomia de que dispõem serve justamente para
a precípua atenção aos objetivos públicos.” O professor Alfredo Ruy
Barbosa discorda: “Este parecer é ridículo, um retrocesso, com o
único objetivo de liquidar com a autonomia das agências, e deve ser
derrubado o quanto antes. Vou reunir colegas advogados e defensores
da lei para derrubá-lo”, promete.
Em escalada crescente para esvaziar as agências - que vai da nomeação
de políticos, e não técnicos, para as diretorias, estrangulamento
orçamentário, falta de dinheiro, insuficiência de quórum com inúmeras
vagas na diretoria -, o governo Lula parte agora para mais uma
ofensiva que imagina mortal: quer transformar as agências em meros
departamentos dos ministérios. Mas ainda há no País quem defenda a
Constituição, as leis e o Estado de Direito. Com a palavra o Supremo
Tribunal Federal.