Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, junho 29, 2006

Merval Pereira - Os donos dos ovos

O Globo
29/6/2006

Se depender de Lula, a campanha eleitoral será baseada exclusivamente
nas comparações com os governos anteriores de Fernando Henrique
Cardoso, pois ele está convencido de que tem números melhores para
mostrar. Se depender de Geraldo Alckmin, essas comparações não serão
o centro de sua campanha. Ele está se equilibrando entre não se
transformar em um traidor do PSDB e, ao mesmo tempo, não ficar preso
nessa armadilha do passado, tentando levar a discussão para o futuro.
O que ele quer mesmo é dizer ao eleitorado que pode fazer melhor que
Lula, e que se Lula fez melhor que Fernando Henrique poderia ter
feito muito melhor, porque a situação econômica internacional é muito
mais vantajosa hoje para os países emergentes, e a eficiência
administrativa dos tucanos é maior do que a dos petistas, e, como
disse Fernando Henrique, o PT só supera o PSDB no instinto
fisiológico e na corrupção.

Mas vai ser inevitável o candidato Alckmin defender o governo
Fernando Henrique, porque Lula vai atacar Fernando Henrique o tempo
todo; o alvo de Lula, o símbolo a ser atingido, é Fernando Henrique.
A dúvida é saber se Alckmin terá a habilidade que José Serra não teve
em 2002, quando tentou convencer o eleitorado de que não era o
candidato da continuidade, e abriu mão de ressaltar as coisas boas do
governo de Fernando Henrique para se livrar das más.

Alckmin tem que ter um equilíbrio para não parecer que está renegando
o passado, mas jogando o mais possível para a frente a discussão, com
a sua perspectiva, com o seu modo pessoal de pensar. Como ele é menos
ligado publicamente a Fernando Henrique do que era Serra, talvez
tenha mais facilidade. O fato é que tanto Lula quanto Alckmin, num
próximo governo, devem continuar com a mesma política econômica.

Porque, a não ser que haja uma ruptura e se retome o discurso do
calote financeiro, não há muito o que fazer de diferente; governos de
tinta social-democrata como PT e PSDB fazem basicamente a mesma
administração econômica.

A discussão hoje é de dosagem, maior ou menor rapidez na queda dos
juros, maior ou menor tolerância à inflação, mais ou menos políticas
assistencialistas, onde cortar os gastos públicos para manter o
equilíbrio fiscal, que por enquanto ainda não está sendo posto em
dúvida.

Por isso, chega a ser irônico esses dois grupos disputarem louros que
são conseqüências de políticas continuadas, mesmo na área social,
cuja rede de proteção começou a ser montada pela Comunidade Solidária
comandada pela socióloga Ruth Cardoso.

A verdade é que Lula pode estar sendo reeleito a bordo de políticas
que prometeu mudar, e está colhendo muitos frutos plantados nos
governos anteriores, e não apenas nos de Fernando Henrique, mas mesmo
no de seu maior aliado hoje, o senador José Sarney.

Parte importante na organização econômica moderna do país foi a
criação da Secretaria do Tesouro, e ter acabado com a famosa conta-
movimento do Banco do Brasil. Sem esquecer o governo Collor, que
iniciou a abertura da economia brasileira ao exterior e mudou a
agenda do país, muito embora tenha sido apeado do governo por corrupção.

Cacareja, pois, sobre os ovos de outros, como afirmou o ex-presidente
Fernando Henrique, em imagem de gosto duvidoso mas apropriada para
embates políticos agressivos como os que estão por vir.

Essa continuidade, que poderia ser sinal de amadurecimento político
do país, transforma-se em uma disputa irracional, quase infantil. É
claro que Lula sabe que não pegou o país “desarranjado” por culpa de
seu antecessor, mas sim por culpa do passado de lutas petistas contra
tudo o que estava sendo utilizado na política econômica de Fernando
Henrique, e continuou sendo utilizado no governo Lula por pura falta
do que pôr no lugar. Até mesmo o velho truque de valorizar o real
para baratear o frango na mesa do trabalhador está sendo copiado, com
o final que já conhecemos.

O Banco Central que aperfeiçoou medidas de controle da inflação é
formado, desde o início da gestão Lula, por nomes oriundos de
governos tucanos, ou que poderiam ser perfeitamente, a começar pelo
primeiro e único presidente, na ocasião da escolha deputado federal
eleito pelo PSDB Henrique Meirelles.

Até na política externa a diferença é mais de ênfase do que de teses,
pois as brigas na Organização Mundial do Comércio tiveram início lá
atrás, assim como a política de aproximação com a América do Sul.
Talvez a cautela, que já era maior com ministros da administração
tucana como Celso Lafer ou Luiz Felipe Lampreia, fosse acentuada com
a presença, no cenário, de figuras como o presidente da Venezuela,
Hugo Chávez, ou o da Bolívia, Evo Morales. Cautela que não impediu,
no entanto, que o gasoduto com a Bolívia, agora contestado, fosse
construído, numa demonstração clara de que a tal solidariedade
econômica com o continente existe não é de hoje.

O que de fundamental diferencia mesmo os dois governos é a visão do
papel do Estado nas democracias modernas, e nela a questão da ética
na política, que já foi bandeira petista e hoje pode se virar contra
sua gestão. Alckmin terá que convencer grande parte do eleitorado que
hoje está com Lula de que pode governar melhor e mais limpamente que
o atual presidente. Tarefa difícil, pois Lula, por esperteza
política, finge que não existe processo de continuidade
administrativa e se anuncia o inaugurador-geral, seja de hospitais já
inaugurados ou de políticas públicas já em curso.

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