Têm mais pontos em comum do que talvez pareça as entrevistas que este
jornal e a Folha de S.Paulo publicaram domingo - a primeira, com o
historiador mexicano Héctor Aguilar Camín; a segunda, com o ministro
brasileiro de Relações Institucionais, Tarso Genro.
De hoje a quatro dias o México elegerá seu novo presidente, e ele bem
poderá ser o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, do Partido da
Revolução Democrática, uma dissidência do septuagenário PRI, apeado
pela primeira vez do poder há seis anos, com a eleição de Vicente Fox.
Aqui ainda faltam três meses para as urnas e a percepção quase geral
é a de que só o imprevisível poderá impedir o presidente Lula de
ficar no Planalto até 2010. Mas, com quaisquer resultados, lá e cá o
futuro pode surpreender - e esse é o primeiro paralelo entre as
situações tratadas por Camín e Tarso.
O segundo é a visão compartilhada por eles de que as diferenças entre
os principais candidatos - para não falar na virulência das
campanhas, uma no fim, outra no início - escondem realidades
objetivas que apontam para convergências que nenhum deles admitirá de
bom grado.
Falando sobre o que separa Obrador do seu adversário conservador
Felipe Calderón, do Partido da Ação Nacional, do presidente Fox, o
historiador põe em dúvida a idéia de que a eleição mexicana será uma
escolha entre dois modelos antagônicos. "As diferenças não são de
diagnóstico, mas de instrumentos", afirma.
Naturalmente, o ministro não pode dizer o mesmo de Lula e Alckmin.
Assinala, porém, que o próximo presidente, seja quem for, terá de
governar com o centro, "porque a sociedade tende para o centro".
Tanto para o Brasil como para o México esse seria o caminho de las
piedras. O centro de Tarso é sinônimo de PMDB, mas não se esgota nele.
O terceiro aspecto comum aos dois países, destacado nas entrevistas,
é o da assimetria entre o cacife eleitoral dos candidatos vitoriosos
e os seus efetivos recursos de poder depois que assumem (ou, no caso
brasileiro, reassumem). Nos dois países, em momentos distintos, os
governantes sofreram uma lipoaspiração que deixou seqüelas.
"Teremos um presidente sem maioria no Congresso, limitado pelo
Congresso, sem possibilidade de promover mudanças de maior
importância." Quem achar que essas palavras são de Héctor Camín
estará certo. Quem achar que são de Tarso Genro, também, porque isso
é o que o preocupa.
Hoje, quando petistas e tucanos passam os dias enfiando agulhas nas
figuras de vodu uns dos outros, pode parecer o cúmulo do otimismo
imaginar que os vencedores de outubro terão, nos vencidos,
interlocutores desejosos de acertar a "agenda comum" de que fala
Tarso para os quatro anos seguintes.
Mas sem isso o cenário de amanhã será o de hoje, numa versão ainda
pior: Congresso travado, reformas em hibernação, pencas de medidas
provisórias reinando no processo legislativo, desarticulação política
e irrelevância dos partidos na condução do País, com os seus
mensaleiros e sanguessugas.
Principalmente se Lula se reeleger, o governo precisará desde logo do
PMDB para superar o "relacionamento fragmentário tradicional" com os
partidos, eufemismo do ministro para a compra fisiológica de apoios
no varejo, e construir uma coalizão minimamente funcional.
Justiça se lhe faça, foi o que quis fazer José Dirceu em 2002, quando
o chefe ainda não tinha subido a rampa e ele prometia puxar para lá o
PMDB. Depois que Lula o desautorizou, no pior erro político singular
do seu mandato, tratou de alcançar o mesmo fim por outros meios. Deu
no que deu.
"Quem não governar com uma maioria parlamentar estável, que dê
capacidade de operar o programa de governo, não governará o País",
diz Tarso, com razão. Mas não está claro como isso se dará com um
PMDB que faz tempo deixou de ser um partido para se transformar numa
franquia.
Tarso diz que a primeira tarefa da coalizão será a reforma política,
que, "se não for feita no primeiro semestre do próximo governo,
certamente será adiada por mais quatro anos". Ele é vago sobre o
conteúdo dessa já mítica reforma. Mas, quando diz que "a cláusula de
barreira ajuda", entreabre o jogo.
A cláusula transformará em mortos vivos os partidos que não tiverem
recebido 5% da votação nacional e pelo menos 2% em nove Estados. Se
vigorasse em 2002, sobreviveriam na Câmara 7 das 17 siglas ali
representadas - PT, PSDB, PFL, PMDB, PP, PSB e PDT.
Na realidade, a reforma que o ministro político de Lula tem na cabeça
é partidária - o que teria sido conversado, segundo vazou, até com
membros da elite tucana que não se incluem entre os que afiam o bico
assim que acordam para atacar Lula, por achar que é perda de tempo -
e o seu tempo é o de 2010.
No desenho atribuído a Tarso, o sistema partidário ficaria restrito a
um punhado de legendas, a primeira das quais - segundo o noticiário -
juntaria o petismo social-democrata, o grosso do PMDB, um bom naco do
PSDB e as siglas afins que tropeçaram na barreira.
Falta combinar com os Estados, porque a Federação é a verdadeira
matriz da política brasileira. O que está acontecendo nesta temporada
eleitoral, com verticalização e tudo, é apenas a mais recente prova
desse truísmo. As disputas estaduais são o que puxa o freio de mão
dos planos reformistas.
Cerebrações partidárias de lado, se e quando petistas e tucanos
recolherem as garras, a agenda comum de Tarso poderá ter algum futuro
- favorecida, como no caso dos candidatos mexicanos vistos por Héctor
Camín, pelo fato de PT e PSDB não terem "modelos irreconciliáveis de
governo ou de política econômica".
P. S. - Hoje, quando o Brasil festeja mais um avanço rumo ao hexa,
pode parecer o cúmulo do espírito de porco chamar a atenção para a
crítica de Camín a mexicanos e brasileiros, "cuja convicção íntima
não é respeitar a lei", mas distinguir entre o legal e o justo,
segundo conveniências de ocasião, "se estamos ou não com muita pressa
para respeitar o semáforo". Mas essa é a política do nosso cotidiano.
Luiz Weis é jornalista