Lula reaviva o mito do líder amado pelo "povo" e acossado pela
"elite", mas instituições avançaram muito desde Vargas
"VOLTEI nos braços do povo" é uma sentença repisada na mitologia
política brasileira. Getúlio Vargas colocou-a na "Carta-testamento"
de agosto de 1954, pouco antes de suicidar-se. Tentava confirmar, com
tintas de drama, a lenda do líder perseguido pelas "elites", mas
amado pela massa dos pobres e humildes. Era o fecho da promessa de
volta por cima, nos sempiternos "braços do povo", lançada quando o
ditador foi obrigado a renunciar, em 1945.
Acossado, Jânio Quadros tentou reativar o feitiço no ato de sua
renúncia, em 1961. Até o mês, agosto, se repetia. Os inimigos estavam
nomeados em sua carta de entrega do cargo como "forças terríveis";
faziam as vezes das "forças e [d]os interesses contra o povo" -mais à
frente esmiuçados nos "grupos internacionais" aliados aos
"nacionais", ambos "revoltados contra o regime de garantia do
trabalho"- enunciados no célebre texto de Vargas. Mas, como os braços
do povo não o vieram acudir, a renúncia de Jânio acabou consumada.
Trinta anos depois foi Fernando Collor de Mello quem clamou ao "povo"
que saísse às ruas de verde e amarelo para defender seu mandato, que
periclitava. Tiro que saiu pela culatra: as pessoas protestaram de
preto, e o político eleito pelo PRN em 1989 foi cassado pelo Congresso.
Chegou a vez de Luiz Inácio Lula da Silva homenagear o mito
varguista. "Lula de novo, nos braços do povo" é o bordão que, em
ritmo de baião, será entoado em sua campanha por um segundo mandato.
O discurso contra as "elites" já não é tão enfático como o de uns
meses atrás, quando o escândalo do mensalão batia à porta de seu
gabinete. Mas o presidente cujo governo promove o espetáculo do
crescimento dos lucros bancários continua a atacar os "representantes
de setores elitistas do país".
Como Vargas -"o ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu
ânimo"-, Lula tenta encarnar o figurino do "predestinado" que supera
com paciência o bombardeio adversário, não deixando de condenar
oposições que "fazem da agressão e da calúnia suas principais armas".
Floresce agora, contudo, a mais significativa evocação varguista pelo
atual presidente da República. "Seria tão mais fácil a gente governar
se tivéssemos de cuidar só dos pobres. Os pobres não dão trabalho,
por isso por muito tempo foram esquecidos." Não representa novidade
que, na cosmologia de Lula, a história tenha começado na sua
Presidência -pobres eram "esquecidos" no passado, agora não mais; e
vão para a lata do lixo décadas de construção da rede de proteção
social pelo Estado brasileiro.
Novidade há na incipiente formulação da utopia de uma sociedade sem
conflito, sem política e sem instituições, na qual o governante fala
diretamente com "o povo". A alegoria pode ser o emblema do que se
tornou a candidatura Lula, afastada de grupos e instâncias
representativas, mas contrasta com a realidade do Brasil meio século
após o suicídio de Vargas. As instituições democráticas existem e
estão fortalecidas, e aí reside a maior garantia de que a farsa do
varguismo lulista não vai extrapolar o terreno da propaganda para
impor uma agenda autoritária.