O Lula que, em 15 de julho de 2005, disse à free lancer improvisada em Paris - e a Globo, sempre a serviço, reproduziu no Fantástico - que o apoio comprado de bancadas governistas no Congresso, apelidado pelo ex-amigo Roberto Jefferson de "mensalão", não passava de caixa 2, "prática sistemática nas eleições brasileiras", é, sem tirar nem pôr, o mesmo que disputa o próximo pleito na condição de "vítima das elites". Se o chefe da Nação se permite a condição - que não lhe é dada no Estado de Direito, regido pela Constituição e apoiado na autonomia dos três Poderes da República - de tornar dolo engano e vício hábito, como estranhar sua aposta na conivência do eleitor?
Ao assumir o que ele é desde 1989 - postulante à Presidência - e o foi até no exercício do cargo, o chefe do governo apenas adaptou o discurso de chefe de Estado à própria conveniência de candidato. Há quase um ano, sua tática era parodiar o bordão dos programas humorísticos de televisão: "Nós somos, mas quem não é?" O PT, que vencera a eleição presidencial convencendo o eleitor de ser o oposto dos adversários "de direita", passou a apostar na presunção de que os oponentes fizeram o mesmo que ele fora pilhado fazendo.
A tática recebeu, um mês depois, o reforço de novo pronunciamento de Sua Excelência, que reconheceu, na televisão, a necessidade de pedir desculpas, sem dizer de quê. Naquela ocasião, também se disse "traído por práticas inaceitáveis", sem explicitar quem o teria traído e quais seriam tais práticas, das quais, aliás, nunca admitiu haver tomado conhecimento. O pretexto do alheamento tem sido o cavalo-de-batalha do arsenal persuasivo do ex-dirigente sindical. Em 1990, o então vice-prefeito de Campinas, Antônio Costa Santos, foi a São Paulo denunciar a Lula falcatruas que estariam sendo praticadas pelo prefeito petista, Jacó Bittar. Não consta que "nosso guia" tenha tomado conhecimento disso e, ao chegar de volta a casa, o denunciante já havia sido demitido da Secretaria de Obras. Hoje, 16 anos depois, ele está morto e sepultado. E o ex-prefeito, embora não mais milite no PT, goza das benesses de um emprego ótimo: é membro do Conselho da Petros, fundo de pensão dos funcionários da Petrobrás.
Quatro anos depois disso, o ex-guerrilheiro Paulo de Tarso Venceslau poria, mais uma vez, à prova a dificuldade de o então ainda presidente somente do PT tomar conhecimento de notícias ruins e graves - a insistência na postura do macaquinho ("não vejo, não ouço, não falo"). Denunciou um esquema de corrupção em gestões municipais petistas, uma das quais do citado Bittar e outra da rainha da bateria dos Unidos do Valerioduto, Ângela Guadagnin. A exemplo do outro denunciante, foi demitido. Ousou revelar em público o que sabia e foi expulso do partido. Pelo menos sobreviveu.
A candidatura do presidente à reeleição, também! Um ano após ter tentado trocar o crime grave por uma infração tolerável (mas capitulada como crime no Código Penal guardado nas estantes do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos), o presidente e favorito à própria sucessão crê ter a condição de se fingir de vítima das "vozes do atraso, que fazem da agressão e da calúnia as suas principais armas". Este argumento é útil porque se encaixa magnificamente no figurino de candidato do tostão contra o do milhão, dos tucanos, indigentes até na retórica.
A eficiência dessa falácia, que consagra de vez a vitória da versão sobre o fato na política brasileira, pretensão das antigas raposas felpudas do PSD de Minas, não se mede na bajulação de intelectuais como o psicólogo Gabriel Cohn, que vê nos ataques à honra do chefe supremo agressões às instituições democráticas (!!!). Nem na desfaçatez de intelectuais, como Alain Touraine, ou de artistas populares, como Chico Buarque, que encontram na prioridade da esmola "social" justificativa para sua adesão desavergonhada ao grupo que usou com menos escrúpulos e mais eficiência o apreço que a classe política nacional, seja de que lado for, sempre manifestou pela própria impunidade.
Neste instante, os ventos empurram a nau presidencial rumo à reeleição com tal celeridade que até os xingamentos de adversários desnorteados, caso do ex-presidente tucano Fernando Henrique, o beneficiam. Essa situação favorável foi construída em anos de prática da lição capital que os petistas foram buscar na saga do ídolo do comissário José Dirceu, seu xará georgiano José Stalin: é possível dissolver os fatos em doses maciças de mistificação e difamação.
Com a mesma eficácia com que confundem as agruras provocadas ao chefe do Executivo por companheiros próximos de governo e de partido com vicissitudes institucionais, os petistas no poder não têm a menor dificuldade em caluniar ex-companheiros que não vestiram a opa dessa grei do "tudo pelo poder". Marilena Nakano, cunhada de Celso Daniel e de Betinho, o irmão de Henfil, mora com o marido, Bruno, e três filhos num apartamento de 70 metros quadrados para escapar da sanha daqueles que a família do prefeito assassinado de Santo André julga serem seus algozes. Ainda assim, se viu forçada a responder às calúnias que os ex-companheiros de militância lhes impingem de "oportunismo": "Aproveitaram-se da morte de Celso Daniel para se dar bem no exterior."
Num país onde o Judiciário admite negociar com o Executivo um aumento de salários para seu corpo funcional em véspera de eleição e donas de casa que participam da pesquisa qualitativa para julgar telenovelas torcem pelos vilões e desprezam os mocinhos, como informou o autor de Belíssima, Sílvio de Abreu, isso não é de estranhar. Só reforça a impressão de que o favoritismo do presidente se explica no perfil da maioria do eleitorado. Inclusive no que tange à moral.