O jogo de "faz de conta" - a expressão é do presidente do TSE -
continua, mas ninguém tem o direito de se surpreender. O mesmo
presidente que nega de pés juntos que o mensalão tenha existido, como
se não soubesse, entre tantas outras coisas, que o procurador-geral
da República já acabou com a farsa, ao denunciar a "sofisticada
operação criminosa" destinada a manter o PT no poder, assume agora
pose angelical na campanha sucessória. Lula mandou três de seus
ministros, Márcio Thomaz Bastos (Justiça), Tarso Genro (Relações
Institucionais) e Dilma Rousseff (Casa Civil), preparar uma portaria
especificando o que ele e o primeiro escalão do Planalto podem ou não
podem fazer pela reeleição, para não afrontar a legislação.
De quebra, Thomaz Bastos e Tarso Genro foram incumbidos pelo chefe de
fazer uma barretada ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), ministro Marco Aurélio de Mello, sob a forma de uma visita que
exibiria, além de consideração pela autoridade de que está investido,
a elogiável disposição do governo de contribuir para a lisura da
campanha e a igualdade de oportunidades eleitorais entre o incumbente
e o seu principal desafiante, Geraldo Alckmin, do PSDB. Mello assumiu
a Justiça Eleitoral deixando clara a sua preocupação de acabar com o
"faz-de-conta" dos políticos capazes de tudo e mais alguma coisa na
caça ao voto e que fingem ter as mãos limpas.
Ainda na semana passada, o ministro entendeu que os aumentos
concedidos por medidas provisórias assinadas por Lula a numerosos
setores do funcionalismo federal contrariam, se não a letra, o
espírito da lei que proíbe iniciativas do gênero nos seis meses
anteriores ao pleito. O parecer de Mello é controverso e pode ser
interpretado como excesso de zelo. Mas, errando ou acertando, pelo
menos ele não tem duas caras. Já o presidente Lula pretende ser o
político mais obediente às leis e normas que buscam separar - nem
sempre com clareza ou com coerência, é verdade - os atos do candidato
detentor do privilégio de continuar no exercício do governo, enquanto
faz a sua campanha, das funções, atribuições e responsabilidades do
chefe do governo e do Estado.
O "pequeno detalhe", porém, é que o candidato-presidente, tão zeloso
do cumprimento das regras eleitorais que se aplicam à campanha a se
iniciar oficialmente no dia 6 de julho, passou três anos e meio
usando e abusando das facilidades de sua condição de chefe de governo
para fazer campanha por mais quatro anos do mesmo, sob o disfarce de
administrar o País. Com o passar do tempo e o aumento do despudor,
Lula deixou de se preocupar com manter a aparência de que ainda não
decidira buscar a reeleição. Em dado momento, disse com todas as
letras que não assumia de vez a candidatura para não ser acusado de
usar a máquina federal a seu favor, o que, por sinal, é muito
diferente de negar que a estivesse usando.
Por fim, fez saber que, impedido legalmente de lançar pedras
fundamentais e inaugurar obras a partir de julho - como se fossem
reais quase todas as que a sua gente inventava para ele poder fazer o
seu número -, continuaria viajando pelo País de segunda a sexta-feira
a fim de inspecioná-las, reservando os fins de semana para a
campanha. Diante disso, é de um cinismo sem tamanho a decisão da
Radiobrás de suspender a emissão do programa radiofônico matinal Café
com o presidente, voltado para as camadas mais pobres da população.
Que exemplo de rigorosa subordinação às leis tem o Brasil na pessoa
de seu supremo mandatário! O pior é que o teatro armado pelo Planalto
dificulta o exame de uma questão substantiva relacionada com a
reeleição.
A lei que instituiu o sistema contém de saída um paradoxo: o
mandatário interessado em conquistar um segundo período de governo
pode trabalhar para isso sem se afastar do posto; já se ele quiser se
candidatar a outro cargo - digamos, um governador que prefira obter
uma cadeira no Senado - tem de se desincompatibilizar meio ano antes.
O mínimo que se pode dizer dessa regra é que ela é contra-intuitiva.
Pela lógica, se fosse o caso de se fazer alguma distinção entre as
duas situações, a norma deveria beneficiar o candidato a outras
funções. Sendo o que são os costumes políticos nacionais, idealmente
todos precisariam se desincompatibilizar.