O Globo
28/6/2006
Tem gente que é capaz de fazer qualquer coisa pelo Brasil, menos
ouvir mais um discurso de Nosso Guia. Mesmo assim, todo mundo terá a
ganhar com a leitura da Oração aos Petistas, pronunciada na convenção
durante a qual, teatralmente, revelou-se candidato.
É uma peça cujo conteúdo não pode cair no lixo das impropriedades
verbais do orador. Ele diz que representa a realização do “sonho
coletivo de ter um trabalhador na presidência do Brasil”. Demagogia
barata. Todos os brasileiros que ocuparam a presidência foram
trabalhadores, inclusive ele. Tendo sido operário, dirigente sindical
e líder partidário, Lula chegou ao Planalto na categoria dos
aposentados (R$ 4.294 mensais, em abril, pelo Bolsa-Ditadura). Essa
capacidade de se apresentar como o que foi e não é, transmutando-se
no que deveria ter sido e promete vir a ser, é a mágica de Lula.
Seu melhor momento esteve na afirmação daquilo que julga ser a boa
qualidade de sua administração da economia. Pelos padrões do
tucanato, foi um craque. Recebeu o país com o Risco Brasil (Risco
Lula, melhor dizendo) perto dos 2 mil pontos. Está abaixo dos 300.
Controlou a inflação, dobrou o valor das reservas internacionais,
reverteu um déficit comercial e conseguiu um superávit de U$ 118,7
bilhões.
Seu capítulo social tem um pouco de cacarejo sobre ovos alheios, mas
é de justiça reconhecer que a gestão petista acelerou políticas de
benefício aos pobres. Nosso Guia diz que em menos de quatro anos
transferiu para o andar de baixo recursos 36% superiores ao dos oito
do tucanato. É melhor negócio ser pobre hoje do que o foi no governo
anterior. (Melhor negócio foi, e é, ser rico, tanto com o PSDB como
com o PT.)
A desqualificação do êxito de Lula por conta da boa avaliação de seu
governo no andar de baixo coloca em marcha um dos mecanismos que
gerou o mito de Getulio Vargas. Parte da contrariedade deriva de uma
incontrolável demofobia. Quando Lula é festejado pelos banqueiros, é
um regenerado. Quando é festejado na favela, é um degenerado. Coisa
assim: “A choldra pode gostar de quem eu gosto, mas eu não gosto de
quem a patuléia gosta.”
Lula agride a inteligência alheia quando se refere às malfeitorias de
sua turma e diz que os companheiros “tiveram condutas equivocadas”.
Depois de tratar o eleitor como um cidadão racional, pede que assuma
a condição de imbecil. “Conduta equivocada” é jogar guimba de cigarro
no chão ou ficar de chapéu dentro da casa alheia. O que ele tinha no
Planalto era uma cáfila de delinqüentes.
Lula já percebeu que a demofobia dos adversários o aproxima de
Getulio Vargas. Lendo-se a Oração aos Petistas tem-se a impressão de
que, lá pelas nove da manhã de 24 de agosto de 1954, Getulio deixou a
Carta Testamento na mesinha de cabeceira do Catete e apareceu no
Irajá, de pijama, discursando num botequim.
Vale a pena ouvi-lo:
• Lula, 2006: “Este Brasil que é a razão da minha existência e ao
qual jurei dedicar a minha vida.”
Vargas, 1954: “Esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de
ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma.”
• Lula, 2006: “As vozes do atraso estão de volta (…), fazem da
agressão e da calúnia as suas principais armas.”
Vargas, 1954: “Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo
(…) se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me
combatem, caluniam.”