O Globo
28/6/2006
O presidente Lula vem dando sinais dúbios de como será um eventual
segundo governo seu, ora deixando à mostra sua veia populista, ora
ressaltando uma preocupação com o equilíbrio fiscal que anda
desaparecida nesses meses de campanha eleitoral. “Nós temos vocês e
vocês têm a nós”, disse ontem, no seu jeito populista de fazer
política, aos representantes de cooperativas reunidas na I
Conferência Nacional de Economia Solidária.
Dias antes, ao ser lançado oficialmente candidato pelo PT, chamou a
atenção para a necessidade de conter os gastos públicos, ameaçando
com um inaceitável aumento da carga tributária, já à altura de 38% do
PIB.
Talvez tanto quanto os minutos do programa de propaganda gratuita, o
que o presidente Lula buscava na tentativa de garantir a adesão
formal de PCdoB e PSB à sua candidatura à reeleição, o que não
conseguiu, fosse a demonstração de apoio institucional de partidos
tradicionais na política brasileira. Mesmo inexpressivos
numericamente, PCdoB e PSB têm representação política na esquerda, o
que daria consistência a uma candidatura que se apóia quase que
exclusivamente no prestígio popular do presidente.
Lula teme que a oposição venda a idéia de que ele não terá capacidade
de governar num eventual segundo mandato, e será tentado a apelar
cada vez mais para a chamada “democracia direta”, passando por cima
do Congresso para ter uma relação direta com a população e os
chamados movimentos sociais, à exemplo do que acontece na Venezuela
de Chávez. Mesmo que esse não seja o “plano B” de Lula, existem
vários indícios de que pode vir a ser.
A declaração do ex-ministro Luiz Gushiken na convenção petista, de
que a verdadeira discussão ética é saber quem cuidou melhor do povo,
representa uma tendência preocupante, como se “cuidar do povo”
isentasse os governantes de deveres éticos. Também o ministro das
Relações Institucionais, Tarso Genro, já se disse favorável à
exacerbação das consultas populares para o aperfeiçoamento da
democracia.
A crise em que o Congresso brasileiro está afundado foi agravada pelo
PT, que primeiro cevou os aliados com dinheiro escuso, e depois os
tratou com a benevolência dos coniventes, permitindo que todos os
“mensaleiros” se apresentassem como candidatos nas próximas eleições.
E favorece o questionamento da democracia representativa, que já está
em curso em alguns países da América do Sul, como na Venezuela e na
Bolívia.
O professor de História Contemporânea da UFRJ, Francisco Carlos
Teixeira, no prefácio que escreveu para o livro “Chávez sem uniforme,
uma história pessoal”, lançado recentemente pela Gryphus, lembra que
“a superação do paradigma clássico da democracia liberal-
representativa” é o que está em discussão, com alguns grupos
considerando que é preciso “transferir a maior parte possível de
poder para as organizações populares, visando a evitar a ação
desmobilizadora, e mesmo traidora, do aparelho estatal, sempre
conservador e paralisante”.
O professor registra que existe “uma certa decepção, ou impaciência,
nos próprios militantes, desejosos de assumir a direção de ações
imediatas e práticas, de uma democracia local e direta, para a
resolução de questões voltadas para o dia-a-dia da população”. Ele
lembra que o próprio Parlamento, para ampliar sua representatividade,
se declarou na Venezuela “o Parlamento nas ruas”. A questão hoje,
para Teixeira, é “construir pontes entre os ‘pais fundadores’ da
teoria da representação — Locke e Tocqueville — e da vontade popular
como Rousseau, e a emergência dos movimentos sociais de massa hoje na
América do Sul”.
Há, por outro lado, a insatisfação dos liberais com a democracia de
massa, que seria passível de manipulação por políticos populistas, e
por isso cresce o movimento para que o voto deixe de ser obrigatório,
na suposição de que, com o voto opcional, somente os que estivessem
interessados realmente nas questões políticas se empenhariam em
votar, reduzindo a possibilidade de manipulação.
Nessa tentativa de superar as deficiências do modelo de representação
em vigor, a utilização de instrumentos de consultas populares, como
os plebiscitos, une esquerda e direita, uns se inspirando na
experiência de Chávez na Venezuela, outros no modelo dos Estados
Unidos. O cientista político Bolívar Lamounier, em seu livro
recentemente lançado “Da Independência a Lula : dois séculos de
política brasileira”, afirma que essa utopia tem muito pouco de
“direta”: “No mais das vezes, trata-se de uma guerra entre lobbies,
dissidências dos partidos e, não raro, de grupos racistas em geral
muito bem financiados; ou então, visa amplificar a ressonância de
propostas ou campanhas promovidas ao mesmo tempo através dos canais
políticos normais”.
Segundo ele, “a possibilidade de manipulação é inerente ao
instrumento, pois a autoridade incumbida de propor os quesitos pode
ficar muito aquém da neutralidade”. O cientista político lembra que
“desde que começaram a serem realizados, há cerca de dois séculos,
plebiscitos e referendos foram quase sempre um jogo de cartas
marcadas, com o objetivo de legitimar decisões autoritárias,
ratificar ocupações de território alheio, e assim por diante”.
O fato é que, antes de discutir se o voto deve ou não ser
obrigatório, ou se plebiscitos devem ser mais utilizados para ampliar
a participação popular na nossa democracia representativa, temos que
organizar nosso sistema político-partidário, e fazer as reformas
estruturais de que o país necessita, reformas muitas vezes
impopulares, como a da Previdência, ou de difícil consenso político,
como a reforma tributária. Ou as reformas da educação e da saúde.
Tarefas mais próximas do discurso lido no teleprompter pelo
presidente lançado à reeleição, do que dos arroubos improvisados do
candidato populista.