O Estado de S. Paulo
26/6/2006
O futuro imediato do Brasil apresenta-se de uma forma bastante
inusitada, pois poderemos ter a experiência de os responsáveis do
mensalão e do valerioduto serem recompensados. Os dutos tornaram-se
visíveis, levando consigo grandes personagens, que tiveram de
renunciar a seus ministérios, e dirigentes partidários, que
abandonaram suas funções. O governo e o PT foram literalmente
decapitados. O discurso histórico dos vencedores de 2002 se tornou,
hoje, motivo de chacota, visto que a ética na política veio a
significar a autorização da corrupção em benefício partidário e a
"mudança de tudo o que estava aí", a manutenção de uma política
econômica tão criticada por ser "neoliberal". O recuo em relação a
esta última questão poderia, porém, ser visto como uma marca de
sensatez e de amadurecimento, mas o abandono da defesa da moralidade
pública consiste numa verdadeira traição a princípios morais. A
situação que hoje se configura é a de um presidente com grandes
chances de ser reeleito e deputados comprometidos com o desvio de
recursos públicos que também poderão ser reeleitos. A questão que se
impõe é: será que o crime compensa?
Se o crime compensa, o futuro não se revela promissor. Lula, o grande
responsável de seu governo - pois do contrário não seria seu -,
coloca-se à margem de tudo o que acontece. Ardilosamente, é como se
ele fosse o maior crítico de seu governo, um oposicionista em relação
a si mesmo, vendendo a imagem de que tudo apura. O que ele fez, sim,
foi pôr todos os seus assessores mais diretos em apuros para salvar
sua própria pele, aparecendo como omisso e estrangeiro a seu próprio
mundo. Tal grau de dissociação, apesar de esquizofrênico, tem dado,
até agora, bons dividendos eleitorais, ao preço de um completo
descrédito daquele que deveria ser um exemplo de comportamento para
toda a Nação. O exemplo a ser imitado se torna uma curiosa perversão:
será que todos nós podemos ser igualmente irresponsáveis, omissos ou
aparentando nenhum comprometimento com nossos próprios atos? É essa a
imagem que o atual governo quer passar para os cidadãos deste país e
para as próximas gerações?
Deputados éticos do próprio PT e de outros partidos estão agora
desanimados. Alguns relutam em disputar uma nova eleição, tal o grau
de vergonha ou de compromisso com a verdade. O seu comportamento
revela um nível de moralidade que pode, no entanto, ser extremamente
prejudicial ao País. Os que se candidatarem correm o grande risco de
não ser reeleitos, pagando por aquilo que não fizeram. A sua
recompensa será a de pagarem pelo que os outros fizeram. Estes, por
sua vez, graças ao dinheiro amealhado e aos seus currais eleitorais,
poderão voltar à Câmara dos Deputados, exibindo o comportamento de
que foram, sim, recompensados pelo abandono da bandeira da ética na
política. Em vez de uma nova legislatura comprometida com a
moralidade, poderemos ter uma outra ainda mais imoral, sem vergonha
de sê-lo. A mensagem transmitida será: imitem a nossa falta de pudor
e de moralidade! Não há limites para a desfaçatez!
A situação ética está atingindo tal grau de deterioração que os
discursos manifestos ou nada significam ou dizem precisamente o
contrário do que aparentam transmitir. Por exemplo, as negociações em
curso com a ala governista do PMDB são apresentadas como de
discussões programáticas. Ao mesmo tempo é vazado que a distribuição
de cargos num eventual segundo mandato de Lula seria feita sob a
modalidade da "porteira fechada", ou seja, os cargos loteados seriam
preenchidos pelo PMDB em todos os níveis hierárquicos dos ministérios
recebidos. Teríamos uma espécie de feudo fisiológico posto à
disposição desses negociadores "programáticos". Logo, a discussão
programática vem a significar: viva a privatização partidária dos
cargos públicos! Se o pudor e a moralidade fossem ainda vigentes, uma
tal tergiversação dos fatos não seria nem apresentada. No máximo,
seria feita na surdina, sem que ninguém aparentasse saber.
O fato, numa perspectiva histórica, é hilário, se não fosse trágico
para o País. Os interlocutores do governo, José Sarney, Renan
Calheiros e Jader Barbalho, já foram as "bestas" do PT, os piores
inimigos. "Coronéis", "corruptos", "atrasados" e outros elogios do
mesmo calibre eram correntes para qualificar os outrora adversários.
Poderíamos, ainda, considerar a possibilidade de que se tratava,
naquele então, de um mero arroubo oposicionista que não visava, na
verdade, a atingir a honra dessas pessoas. Neste caso, conviria um
pedido público de desculpas, acompanhado de um novo tipo de postura.
Agora, convenhamos, que esses personagens passem a ser "companheiros"
num passe de mágica é algo que não resiste à menor prova de correção
e de moralidade.
O comportamento de Lula e dos deputados e dirigentes partidários
comprometidos com a corrupção é pior, em certo sentido, que o do PCC.
Este, pelo menos, tem a virtude da sinceridade e da coerência, não
ocultando o que faz, agindo consoante com suas idéias e escancarando
a violência da qual é o patrocinador. Aqueles escondem o que fazem,
dizem o contrário da linguagem dos seus atos, procuram esquivar-se de
qualquer comprometimento com a palavra, exibindo uma violência
implícita, desestruturadora da cena pública e das instituições
representativas. Destroem a democracia, dizendo segui-la.
Nada mais coerente, então, que o presidente Lula continue usando e
abusando do seu cargo presidencial, viajando por todo o Brasil,
apresentando-se como candidato, declarando não sê-lo. As palavras
passaram apenas a dizer o contrário do que deveriam significar.
Viagens para inaugurar obras passarão a se chamar viagens de
vistoria! A ficção da moralidade continuará a produzir os seus
frutos. Até onde irá a recompensa?