Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, junho 26, 2006

Folha de S.Paulo - Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O equívoco - 26/06/2006

O curador de resíduos marcara uma audiência coletiva, todos os
herdeiros, com suas respectivas fêmeas, deveriam presenciar a
assinatura de um termo, ele se atrasara em busca da certidão de
casamento de um tio-avô morto havia tempos, correu pelas ruas para
chegar à hora certa. Viu uma mulher caminhando na calçada oposta.
Apesar da pressa e do cansaço, atravessou a rua e tentou acompanhar a
mulher, lutando contra os transeuntes que o atropelavam. "Taí uma
mulher gostosa! Com essa eu topava!" A mulher fazia o mesmo
itinerário, e só quando chegou muito perto dela foi que a reconheceu:
"Otávia!".
Ela parou surpreendida: "Ué? Você anda me seguindo?". "Estou indo
para os resíduos. Que história é essa?" "Os resíduos?" "Não. Essa
saia. Está muito apertada." "Engordei um pouco. A saia é antiga.
Lembra-se?" "E esse cabelo?" "Vim cedo para a cidade, passei no
cabeleireiro, ele deu um jeito, preciso cortar as pontas, está uma
indecência."
Uma indecência. Parado na rua, ele percebeu que os homens passavam
por sua mulher e deitavam olhos pulhas em cima das pernas dela. Um
cara de óculos esbarrara num poste, olhando furiosamente para ela.
Para sua mulher. A mulher dele.
E, durante a audiência, notou que um primo afastado, que não via há
anos, não tirava os olhos de Otávia.
Naquela tarde, antes mesmo do jantar, mal chegaram em casa, ele
arrastou-a para o quarto.
"Mas espera um pouco, estou pregada..." "Não. Quero você assim mesmo!"
A brutalidade com que a possuiu passou à história de sua vida íntima,
da vida íntima dela. Um dia, Otávia insinuou qualquer coisa, recordou-
lhe aquela vez, mas ele ficou envergonhado, desculpou-se de forma
ridícula: "Esquece aquilo. Foi um equívoco!".

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