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Se os seus executantes são camponeses, na maioria dos casos as
iniciativas do MST são dirigidas e planejadas por equipes ideológicas
EM ARTIGO ANTERIOR, publicado nesta Folha em 14 de maio, "A esquerda
e a América Latina", comentei artigo do venezuelano Teodoro Petkoff,
em que o autor distingue duas esquerdas na América Latina, a que ele
chama de "reformista radical" (Tabaré Vázquez, Kirchner, Lula etc.) e
a "arcaica" (Castro e Chávez, sobretudo). No presente texto, tento
exemplificar e desenvolver, de um modo mais geral, essa oposição. E
dizer duas palavras sobre a posição de Lula e do PT.
Bom exemplo da oposição que separa as duas esquerdas é a experiência
trágica do governo Allende. Costuma-se dizer que a queda de Allende
tem muito a ver com a Guerra Fria. Isso é verdade, mas -guardadas as
proporções- em duplo sentido.
Os americanos sustentaram os golpistas. Castro apoiava Allende, mas
manipulando a situação em favor de si próprio e do bloco que
representava (sobre a violência das "pequenas nações", ver Adorno).
Allende era um democrata, mas cometeu o erro -muito da época, é
verdade- de aceitar uma ajuda importante de Castro antes da sua
eleição, o que abriu a porta para todo tipo de manobras.
Castro prolongou a sua visita ao Chile em 1971, o que criou problemas
para Allende. Em seguida, tentou pressioná-lo a nomear, para um cargo
de chefia da polícia chilena, um cubano membro da segurança
castrista, que se casara com uma das filhas do presidente (sobre
esses pontos, ler, entre outros, "Cuba Nostra", de A. Ammar, Paris,
2005).
Em um plano mais geral, Fidel Castro sustentou o aventureirismo da
extrema-esquerda chilena. Mas a "rota de colisão" existe, mesmo antes
que uma das esquerdas chegue ao poder. Um bom exemplo disso, no
Brasil, são as ações do MST. Uma parte da esquerda não-radical hesita
em criticá-las. Condenando-as não estaríamos fazendo o jogo da direita?
Na realidade, apesar das aparências, essas "ações" não preparam um
futuro melhor para os camponeses, nem a curto prazo -porque não se
trata de legítimos movimentos de pressão, mas de ações violentas que
prolongam o ciclo das violências -nem a longo prazo. Os intelectuais
que hoje giram em torno das "universidades" do MST deveriam refletir
sobre qual foi o destino do campesinato nas revoluções russa e chinesa.
A rigor, as "iniciativas" do MST não são ações "do movimento
camponês". Se os seus executantes são camponeses -o que aliás nem
sempre é verdade-, na grande maioria dos casos as iniciativas são não
só dirigidas, mas também planejadas, por equipes ideológicas. É
preciso evitar toda "ilusão sociologizante".
Na realidade, o significado essencial desse tipo de movimento está
mais presente na ideologia dos dirigentes -porque esta define os seus
objetivos presentes e futuros- do que na condição dos seus
participantes diretos. Engana-se o ex-petista que comparou os
dirigentes do MST a Gandhi ou a Martin Luther King. Gandhi visava a
independência da Índia. Luther King, o fim da discriminação racial. A
direção do MST -à sua maneira ela o diz, quando subscreve o ideário
castrista ou leninista- não quer ("apenas", isto é, "na realidade")
libertar os camponeses, mas substituir um tipo de opressão por outra.
Quanto ao governo Lula, sem dúvida ele não aderiu ao populismo ou ao
totalitarismo, e isso é um mérito. Mas mérito muito insuficiente. Uma
parte da direção petista investiu o antigo impulso revolucionário na
montagem de uma máquina de corrupção. O resultado foi uma espécie de
"bolchevismo mafioso".
Quanto aos não corruptos dentro do PT, é visível que lhes falta o
conceito de uma política não-revolucionária e não-corrupta -o de uma
política socialista e democrática. Eles declaram condenar os
"delinqüentes" do partido. Mas, por falta de uma perspectiva bem
lúcida, ou acabam resvalando, em alguma medida, na tese perigosa de
que a corrupção é mais ou menos inerente a toda prática política
operando em "meio" capitalista, ou atenuam responsabilidades por meio
do argumento de que também os outros partidos cometeram pecados e que
destes não se falou o quanto era preciso, argumento insuficiente
(mesmo se a imputação é legítima), já que, além do tamanho da
operação, há, no caso do PT, uma circunstância agravante pelo fato de
se tratar de um partido que se apresentava como modelo de virtude
cívica.
Corrupto ou desarmado diante da corrupção, o petismo não oferece uma
boa alternativa ao revolucionarismo. Só recusando um e outro a
esquerda encontrará o seu caminho.
RUY FAUSTO é filósofo e professor emérito da Universidade de São Paulo