O Globo
27/6/2006
Ando deprimido, eu e muita gente que achava que a democracia
provocaria uma rápida reorganização da vida republicana. No entanto,
vemos hoje que muitas mentiras passam por verdades e que fatos
criminosos serão recompensados. Há uma decepção ampla no país. Em
tucanos e em petistas. Os tucanos se decepcionaram com os tucanos, e
os petistas, consigo mesmos.
Os tucanos se achavam a “lógica”, a “razão”, o equilíbrio diante da
complexidade e acreditavam que esses simples atributos bastariam para
mudar o Estado ou para destruir Lula. Agora, vemos que o PSDB não tem
plataforma clara. Não é só que o Alckmin não tenha carisma, o
problema é que as propostas políticas do PSDB não são compreensíveis
para a população e, talvez, para muitos tucanos tardios da geração
ilegítima. FH só foi eleito pelo Plano Real, depois ninguém entendeu
mais nada, nem ele explicou. As importantes realizações de seu
governo foram impalpáveis para as massas: uma responsabilização maior
da opinião pública, o fim do “finalismo”, a recusa ao salvacionismo,
a responsabilidade fiscal, a administração racional, as tentativas de
reforma institucional e a sensatez macroeconômica que o Palocci
herdou (Deus o abençoe...). Mas tudo isso não tem a visibilidade que
o povão entende. Os tucanos descobriram que seu ideário também era
utópico, dentro do Brasil real.
Os verdadeiros petistas também se decepcionaram. Havia grandeza em
muitos petistas. Os mais sinceros e “cândidos” queriam a instalação
de uma ideologia generosa e achavam que haveria uma militância mais
ética no poder. Eu mesmo acreditava (podem ver meus textos de 2003)
que haveria uma dedicação maior que a “ nonchalance ” dos tucanos.
Mas os crentes desta utopia também descobriram que a perversão
política é mais poderosa que ideologias, que a boçalidade é maior que
belas intenções, que seus puros desejos foram anulados pela “porcada
magra” que invadiu a “democracia burguesa”.
Curiosamente, por bem ou por mal, houve uma reforma psíquica na
esquerda brasileira tradicional. Não são mais tão ingênuos como há
dois anos, e isso é um avanço.
Ou seja, nem a social-democracia de colarinho branco nem a de macacão
rolaram, porque o Brasil profundo resiste às idéias claras, à
racionalidade, aos voluntarismos generosos. Em nossa História tudo
vai devagar e só algumas migalhas frutificam. Nos últimos anos, tudo
que aconteceu é muito mais o produto de influências econômicas
externas e da espantosa resistência colonial do Atraso do que de
nossos desejos políticos. Somos filhos bastardos de um progresso que
não planejamos.
O Brasil evolui pelo que perde e não pelo que ganha. O que sempre
houve no país foi uma desmontagem contínua de ilusões históricas.
Esse é nosso torto processo: com as ilusões perdidas, com a História
em marcha a ré, estranhamente, andamos para a frente. O Brasil se
descobre por subtração, não por soma. Chegaremos a uma civilização
quando as ilusões chegarem ao ponto zero. Por isso, acho muito boas
as decepções recentes. Elas nos fazem avançar mesmo de lado, como
siris-do-mangue. Por decepções, fomos aprendendo, ou melhor,
desaprendendo.
Nos anos 60, “desaprendemos” a fé numa revolução mágica. Nos anos 70,
descremos do voluntarismo místico da contracultura e da guerrilha
suicida.
Nos 80, com as dificuldades da restauração democrática, aprendemos
muito. Com o tumor na barriga do Tancredo, com o homem da ditadura
Sarney assumindo (sempre este homem fatal...), descobrimos que a
democracia “de boca” não estava entranhada nas instituições.
Nos anos 90, tivemos a preciosíssima desilusão com o Collor,
aprendemos muito com seu fracasso. O impeachment foi um ponto
luminoso em nossa formação e nos trouxe a fome por uma república
democrática. FH foi um parêntesis em nossa tradição presidencial, que
agora volta ao formato secular. Ele e nós nos desiludimos porque
achávamos que a racionalidade seria bem recebida. Não foi.
E agora? De 2002 até agora? Que falta desaprender agora, para
chegarmos ao futuro de uma desilusão?
Bem, diante de tantas decepções temos de ver o lado bom que possa
existir na Era Lula. Há lulas que vêm para o Bem...
Falando como um teórico historicista, acho que com o corte
epistemológico, com o salto qualitativo que Roberto Jefferson
provocou, aprendemos muito. Todo o diagrama da direita do atraso
ficou visível quando Jeff abriu a cortina do bordel e nos mostrou a
sacanagem sistemática que ocorria. Vimos a cara da fisiologia do
Atraso e, também, de quebra, entendemos o absurdo dos métodos
“revolucionários” que o governo do PT adotara, na base dos “fins
justificando os meios”. Entender o crime da direita e da esquerda foi
uma lufada de verdade em nossa vida política. Foi muito bom. O PT
grandiloqüente, o PT onipotente murchou e murchará no próximo governo
de Lula, mesmo que não queiram.
Também foi bom entendermos a inépcia da república, hoje. Vimos a
dificuldade das punições, o engarrafamento dos escândalos, a
desmoralização da Lei, vimos que nada se definirá e que ninguém irá
em cana, mas houve um grande avanço em nossa consciência crítica.
Estamos bem menos “alienados”.
E, diante de tanta decepção nacional, temos só um vitorioso: Lula,
impávido, cavalgando seu cinismo magistral e sua imensa autopromoção,
seu carisma populista, finalmente um Lula muito mais legível para as
massas, o Lula óbvio, legítimo, escocês, sem os incômodos slogans
“dirceuzistas”. Nem o Lula “vermelho”, nem o Lulinha paz e amor, mas
o Lula real, ambicioso e egoísta. E esse Lula nos trará de volta o
formato do Brasil antigo que o Plano Real e o racionalismo de FH
tentaram interromper.
Mas, por mais que se destruam as instituições conseguidas, creio que
as conquistas da democracia poderão ser prejudicadas, mas não vão
sumir, inclusive pela maior complexidade da economia que a abertura
permitiu. Estamos mais desiludidos, porém mais sábios para enfrentar
a verdade atrasada do país que vai voltar. E a verdade do país é o
PMDB. Ali está nosso fisiologismo secular. O Brasil é PMDB. O ser
humano é do PMDB.