Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 01, 2006

Miriam Leitão Fala, Andrade

O GLOBO

A jornalista Dorrit Harazim tem nos trazido notícias de um Brasil que quer ser ouvido. Suas reportagens sobre o técnico de futebol José de Andrade contam a história síntese de um país desigual e dissimulado. Andrade foi vítima de racismo na Associação de Oficiais da Polícia Militar de São Paulo e reagiu. Tem sofrido outras ameaças no vale-tudo que o Brasil sempre usou para fingir que é o que não é.

O Brasil até hoje não reconhece a existência do racismo, mas pergunte a qualquer negro se ele já sentiu a presença da discriminação e ele abrirá um pote até aqui de mágoa. São olhares de reprovação, pequenos gestos, uma palavra, um silêncio ou a agressão aberta — como sofreu Andrade. A sensação de desconforto persegue os brasileiros com fenótipo dos povos africanos, apesar de a “mulata” ser aclamada por suas virtudes físicas, principalmente nesta época do ano.

Andrade foi vítima de agressão verbal pública. No meio de um campo de futebol, o coronel Antonio Chiari foi explícito: o técnico Andrade era da “cor de merda”, um “preto, macaco”. Foi o que ele gritou na cara do técnico ao receber um cartão amarelo. Recebeu um vermelho em seguida e agora enfrenta um inquérito iniciado pela queixa feita pelo agredido.

No segundo capítulo da mesma história, ficamos sabendo que a vítima foi afastada das suas funções no clube da Associação dos Oficiais da PM, difamada pela internet e a testemunha foi demitida dessa mesma Associação. O problema para os oficiais da PM envolvidos na história é que o Brasil mudou mais do que imaginam.

Na mesma semana em que a Associação dos Oficiais da Polícia Militar de São Paulo estava afastando a vítima do trabalho e demitindo a testemunha, o governador do estado de São Paulo passou duas horas na Câmara Americana do Comércio num evento que reuniu 400 pessoas na criação do Instituto Brasileiro de Diversidade. Lá estava a ministra Matilde Ribeiro. Estava também o secretário de Justiça de São Paulo, Hédio Silva, negro como Andrade. O silêncio tem cada vez menos cúmplices. O IBD nasce com o objetivo explícito de produzir estudos e dados sobre a exclusão no mercado de trabalho e de envolver as empresas com programas para aumentar a sua diversidade, do chão de fábrica até as diretorias. O IBD inclui também a discussão da discriminação contra mulheres e portadores de deficiência, mas nasceu por iniciativa de Hélio Santos, do movimento negro.

O mercado e os governos começam a debater o tema puxado por ONGs e pela percepção desta nova fronteira da responsabilidade social.

— A empresa tem que ser internamente um retrato da sociedade na qual está envolvida — disse, no evento, o presidente da CPFL, uma das empresas patrocinadoras do Instituto. As outras são o Banco Real-ABN Amro e a produtora de fertilizantes Fersol.

O Instituto Ethos, um dos parceiros do IBD, vai lançar, em breve, a segunda edição da pesquisa sobre etnia e gênero no mercado de trabalho. No último levantamento, informou-se que, nas 500 maiores empresas brasileiras, os negros eram minoria em todos os níveis funcionais e que, na direção, eram apenas 1,8%. As mulheres chegavam a 9% na diretoria. A nova pesquisa mostrará que as mulheres tiveram um avanço, mas os negros, não.

O racismo à brasileira sempre precisou que Andrade ficasse em silêncio e que a ofensa dirigida a ele fosse engolida. Isso faria de Andrade uma pessoa amedrontada, um negro “que sabe o seu lugar”, e estaria confirmada a separação hierárquica da sociedade brasileira. O Brasil poderia descansar, repetindo que este é o país menos racista no mundo, porque, afinal, todos são um pouco negros.

James Meredith é lendário nos Estados Unidos. Hoje tem perto de 90 anos, mas não parece. Ele subiu, lúcido e forte, ao palco da Sala São Paulo, na bela Estação da Luz, em novembro do ano passado, e deu dois recados: há muito tempo não vê tanta desigualdade racial como viu no Brasil nos quatro dias em que o esteve visitando; desde os anos 60, no início do movimento dos direitos civis, ele não vê tanta energia em um movimento negro como no Brasil de agora.

Era o dia da Consciência Negra e a sala estava lotada de negros famosos, atores, atrizes, cantores. A festa da Afrobrás anualmente é com pompas e circunstâncias. Noite de longos e black-tie. A diferença é que a maioria dos convidados é negra. Os muitos cabelos de penteado étnico dão o toque de beleza assumida. A festa foi uma mistura de música vibrante e momentos de humor e emoção.

— Se ao negro for dada uma oportunidade, ele agarra e vence — avisou a mãe de Daiane dos Santos. Ela sabe o que ensinou para a filha.

— Não sei quem treme mais: se sou eu, se minhas pernas — brincou o menino Antonio Mussum, de 12 anos, ao receber a homenagem póstuma ao pai.

Com a música cada vez mais forte, o público foi sendo envolvido até o ponto máximo no “Sarará Crioulo” cantado em coro repetido, debochado e arrebatador por duas dezenas de cantores liderados por Alcione, Sandra de Sá, Beth Carvalho, Zezé Motta e Luis Melodia.

Toda aquela exuberância parecia indicar que o problema estava superado. Mas o dia-a-dia não engana. Aquele palco superpovoado de bem-sucedidos veio sendo construído desde o Teatro do Negro nos anos 50. Terá que ser agora construída a mudança da realidade de milhões de negros brasileiros anônimos. São gestos como o de José de Andrade e de sua família que marcarão o início de um novo Brasil. Não o que nega o racismo, mas o que sabe dizer não ao racismo.

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