Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 01, 2006

Carnaval e cinzas PAULO RABELLO DE CASTRO

FOLHA

Hoje é Quarta-Feira de Cinzas. Acabou o Carnaval no resto do mundo, menos no país do Carnaval. Aqui, a imposição das cinzas, às quais retornaremos um dia, só acontece quando as brasas da nossa folia incontida se abrandarem, para lá do final da semana. No Nordeste, a folia arretada continuará, eletrizada pelos carros de som e pelas bandas de rua. No Sudeste, como sempre, haverá o desfile das campeãs. É a folia industrializada e transformada em algumas divisas e nuns empregos a mais.
Roberto Da Matta, entre outros, estudou profundamente a sociologia do Carnaval. Pouca gente estudou a sociologia das cinzas desta quarta-feira. Os católicos vão às igrejas onde se lhes impõe a bênção das cinzas, relembrando aos fiéis que o fim está próximo, a paixão e a morte, para, depois, vir a passagem para a melhor vida.
Portanto, cinzas representam resignação. Resignação aos fatos e ao ciclo da vida.
Transpondo, vejo o Carnaval e as cinzas da Quaresma como um rito também da economia. Vejo a irreverência do carnaval inflacionário do Brasil, muito mais prolongado que em qualquer outro dos países que viajaram em espirais de preços, a partir do fim dos anos 70. O nosso carnaval durou muito mais, teve muito mais sambas-enredo (os planos heterodoxos) e caímos, por fim, na marchinha lenta do Plano Real, quando fomos empurrados para a escovação dos nossos pecados no purgatório dos juros galopantes e da tributação escorchante. É a mais prolongada Quaresma de que tenho notícia.
A quaresma do crescimento, durante os 12 anos do Real, sob duas administrações que se diziam ideologicamente opostas, mas que rezam a mesma missa de cinzas, de expiação de pecados inabsolvíveis, na cruz tributária que nos matou o direito à prosperidade, e no pau-de-arara dos juros que mói o futuro dos pobres carnavalescos, perdidos neste inferno de Dante.
A boa notícia é que o enredo tem um fim, que representa o novo começo de tudo. Tem até personagem, para encarnar a crucifixão (não sei se a ressurreição, com a respeitosa dúvida) que prenuncia a Páscoa e, portanto, a passagem para a realidade nova.
Essa breve (e inútil) sociologia das cinzas teria outros aspectos a serem comentados, houvesse espaço e paciência do meu leitor. Por exemplo: a resignada expiação de nossos pecados, na prolongada noite da estagnação do Brasil, que ainda paga R$ 157 bilhões (só no setor público) em juros anuais para rolar a dívida coletiva dos seus foliões. Quanta resignação, contrastando com a embriaguez enlouquecida dos tempos inflacionários, servidas, ambas, a bebedeira e o purgativo, pelo mesmo botequim e pelos mesmos botequineiros de delirantes idéias econômicas. Essa fica para o Da Matta explicar.
Só acho que nossa resignação é demais, tão vassala quanto a enlouquecida farra de antes. A sociedade brasileira, de joelhos, se resigna a aceitar um Congresso Nacional que deixa de votar o Orçamento da União, principal razão de o povo sustentar tantos marmanjos em Brasília, e, quando o ano se acaba, a peça orçamentária do governo sambista resta sem voto nem aprovação, atrasando a entrada do bloco. Já é março e o país dos foliões arrependidos continua sem um orçamento fiscal.
Conclusão inevitável: o Carnaval só acabou mesmo para nós, do andar de baixo, que pagamos toda a conta, depois de ficar sem dormir, pelo barulho do andar de cima. Ali, como sempre, o Carnaval ainda está comendo solto. "Miserere nobis".

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