Antes que alguns exaltados ideólogos da sudamericanidad - promovida agora a latinidade - se sintam tomados de entusiasmo ao vislumbrar, na conquista, pela tradicional escola de samba de Noel Rosa (e Martinho da Vila), do campeonato do Grupo Especial do carnaval do Rio de 2006, uma apoteótica vitória "bolivariana" - como a ela se referiram os sites e jornais venezuelanos -, conviria avaliar o êxito do rico e criativo desfile da Unidos de Vila Isabel, com seu samba-enredo em portunhol Soy loco por ti America (aproveitando o título da já antiga canção do compositor baiano da Tropicália), no contexto das transformações que vêm ocorrendo na mais tradicional festa brasileira - o carnaval, que por muitas gerações vinha encantando (ainda?) a alma popular.
Aqui seria dizer pouco - embora justificadamente nostálgico - referir ao processo de desfiguração cabal que vem sofrendo, ao longo dos anos, o nosso carnaval, à medida que as marchinhas, os sambas, as marchas-rancho - compostos a cada ano para delícia dos foliões que os cantavam nos salões, nos blocos, nos corsos, nas ruas - foram cedendo lugar a essa espécie de "musicais da Metro" produzidos por negócios de alta monta, geridos por empresas com intenso trabalho o ano inteiro, altos investimentos e a mais moderna tecnologia. Sim, a empresa carnavalesca no Brasil é respeitável, organizada, gera emprego e renda - especialmente na indústria do turismo. Mas nada mais tem que ver com o "espírito do carnaval" - cada vez mais relegado à memória e ao registro dos nossos ainda recentes antepassados.
Hoje é o excesso de exibicionismo das "celebridades" - das novelas, da política, da "sociedade" - nos camarotes, é o frenesi coreográfico da axé music (também apelidada de aeróbica baiana), a massa sonora indiferenciada dos famigerados "trios elétricos" (uma das invenções mais letais para o velho carnaval) e, neste ano, a novidade dos raps, a barulheira roqueira operada pelos DJs, tipo Fatboy Slim, e tudo o mais que produz uma indigesta salada de subcultura, quase sempre atentatória aos mínimos padrões de bom gosto. E foi dentro desse quadro, que sempre exigiu recursos de origem duvidosa para o patrocínio milionário das escolas de samba, especialmente no Rio de Janeiro - onde nunca faltou financiamento do jogo do bicho ou do narcotráfico -, que se situou o grande negócio mercadológico do polêmico presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ao levar a estatal petrolífera venezuelana PDVSA a investir, de R$ 900 mil a R$ 1 milhão, na escola da Vila Isabel, que há 18 anos não ganhava um campeonato.
É claro que não poderia deixar de impressionar tanto os assistentes do camarote comprado pelo governo da Venezuela quanto a população daquele país ver o imenso boneco de Simon Bolívar, de 12 metros de altura - carregando na palma da mão direita um coração com luz vermelha piscando -, assim como as bandeiras da Venezuela levantadas em plena euforia pelos milhares de "militantes" da Unidos de Vila Isabel, muitos dos quais, entrevistados na TV, demonstravam não ter a menor idéia nem da língua, nem do país, nem do boneco gigante com vestes militares que fora levado por um dos carros alegóricos da escola - sabiam apenas que o coronel Chávez tinha dado muito dinheiro para sua escola fazer um belo desfile e ser campeã, depois de 18 anos de frustradas tentativas. Isso não bastava?
Hugo Chávez não compareceu ao desfile - como fora erradamente anunciado. Mas será que resistirá à tentação de comparecer ao desfile das campeãs, neste sábado? Em todo caso talvez já tenha criado uma séria dúvida entre os dirigentes da campanha, já a pleno vapor, pela reeleição do presidente Lula: a esta altura será conveniente ou não a presença do colega venezuelano nesse desfile - já que não seria cortês nosso presidente deixar de acompanhá-lo, no caso?
De qualquer forma, os integrantes da Unidos de Vila Isabel fizeram por merecer a premiação, ao deixar para trás várias favoritas - como Mangueira, Viradouro, Unidos da Tijuca, Beija-Flor - e superar, na última pontuação, a Grande Rio - servindo seu samba-enredo como item de desempate. Mas será que o desempatador enredo Soy loco por ti América permite que se fale em vitória da latinidade em vez da latinoamericanidad?