Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 18, 2005

A tragédia desenterra raízes do jornalismo Dorrit Harazim

O ESTADO DE S PAULO

Em New Orleans, a mídia americana recupera a capacidade de ver, ouvir e viver a realidade

 

Foram cinco anos de torpor voluntário e deferência constrangida. Cinco anos de jornalismo político aveludado no tom e intimidado no tratamento da Casa Branca. Para romper o dique, foi preciso um furacão com a ferocidade do Katrina, potencializado pelo abissal despreparo do governo em responder à emergência. E coube a um comentarista da BBC, Matt Wells, perceber primeiro que a imprensa dos Estados Unidos talvez tenha sido salva pelo Katrina.

 

"Em meio ao horror, o jornalismo televisivo americano pode ter reencontrado a sua espinha dorsal graças ao furacão", observou, logo que os canais de TV começaram a mostrar as entranhas da tragédia. No entender de Wells, "a tímida e autocensurada cultura da mídia dos EUA", que até então não fora páreo para "a magistral e agressiva máquina de emascular notícias ruins" montada pela Casa Branca de Bush. "Mas a complacência acabou e a indignação moral começou a vazar."

 

Na última sexta-feira, o general Russel Honoré, maior autoridade da lei e ordem em New Orleans, e Terry Ebert, diretor local do Departamento de Segurança Interna, ainda tentaram conter o fluxo de imagens da real extensão da tragédia. Mas era tarde demais. O dique fora rompido. Vinte e quatro horas depois de decretarem a vigência de uma medida batizada de "acesso zero" - proibição de fotografar ou publicar fotos da remoção dos cadáveres espalhados pela cidade -, as autoridades tiveram de recuar diante da reação bate-pronto da CNN. A emissora a cabo tinha aberto processo contra o governo por violar a 1ª e 4ª emendas da Constituição, através de "decisão unilateral e sem precedentes de proibir cobertura de importante componente de sua função governamental, a saber, o resgate dos mortos da tragédia". Antes que o embate adquirisse proporções diluvianas, o governo mudou de curso.

 

"Não vamos banir nem restringir a presença de ninguém em nenhuma área pública... Nem teríamos meios legais para fazê-lo... Só podemos controlar quem deve acompanhar nossas equipes, quem usa nossos aviões, lanchas ou veículos...", apressou-se em retificar o porta-voz da força-tarefa na região devastada. Esclareceu que a medida apenas vetava a incorporação de jornalistas às equipes de resgate, mas não os impedia de operar por conta própria, e que o mal-entendido fora fruto do empenho do governo em preservar a dignidade das vítimas.

 

Justificativa oca, uma vez que a "dignidade das vítimas" já havia sido repetidamente violada pelo próprio governo. Primeiro, enquanto elas ainda estavam vivas, pela ausência de socorro oficial. Depois, quando já mortas, por apodrecerem a céu e sol aberto, ao longo de dias, como peças de um cenário insano. Ainda assim, sob a ótica do governo, a tentativa de higienizar a cobertura do pós-Katrina fazia sentido por ter sido tão eficaz no caso da invasão do Iraque - até hoje, com quase 2.000 soldados americanos mortos em combate, jornais e emissoras de TV dos EUA acatam o compromisso de não fotografar os seus mortos, feridos graves ou caixões envoltos na bandeira nacional.

 

De um modo geral, os relatos da guerra, ocupação e atoleiro no Iraque continuam mantendo o tom edificante inicial e permitiram à Casa Branca esperar docilidade semelhante no caso da tragédia do Katrina. Afinal, não faltavam exemplos de "triunfo do espírito humano" condizentes com a concepção oficial do que deveria ser veiculado como notícia - resgates milagrosos de idosos agarrados a cães de estimação, gestos quase bíblicos de generosidade e abnegação, reunificação milagrosa de parentes.

 

Mas faltou combinar o roteiro com Anderson Cooper. No dia 27 de agosto esse repórter de 38 anos e âncora bissexto da CNN decidiu interromper as férias na Croácia. Pelo que ele vinha lendo, o Katrina se anunciava devastador e era melhor estar na região quando ele chegasse. Seu pai, já falecido, era filho do Mississippi humilde. Sua mãe é a milionária socialite Gloria Vanderbilt. Dessa fusão nasceu a voz que viria a falar mais alto que a de George W. Bush.

 

Anderson cruzou o Atlântico por conta própria, seguiu direto para Baton Rouge, a capital da Louisiana, e alugou um utilitário para tentar chegar a New Orleans. Vagou pela devastação dos dois Estados sulistas mais atingidos freqüentemente desconectado da nave-mãe, devido à falência nas comunicações. Ouviu, viu e viveu a decomposição da esperança humana em jornadas de 100 horas de trabalho ininterrupto. No tom e no conteúdo, suas transmissões se tornaram o cordão umbilical daquele dejeto de América com o resto do país. E sem o filtro habitual dos âncoras de TV.

 

Filho de megacelebridade com dois sobrenomes de peso - Gloria Morgan Vanderbilt -, Anderson tinha 10 anos quando perdeu o pai. E mal completara 21 quando o irmão mais velho, de 23, saltou para a morte da varanda do apartamento nova-iorquino da família, no 16º andar, ante a vista da mãe. Recém-formado por Yale, Anderson falsificou uma carteira de jornalista e partiu para o mundo com uma câmera de vídeo embaixo do braço.

 

Começou pela Somália. Os anos seguintes o encontraram na Tailândia, Vietnã, Ruanda, Bósnia. Acabou por tornar-se o mais jovem correspondente jamais contratado pela rede ABC. Resumo do que o move e eventual chave para explicar a empatia com os náufragos e órfãos do Katrina: "A perda. Sei compreendê-la", declarou ao colega da New York que tentou em vão conduzir uma entrevista linear com Anderson Cooper. Na maior parte das vezes em que foi localizado por telefone na rota do furacão, Anderson acabava chorando ou já atendia aos prantos.

 

Outros trechos da entrevista que jogam alguma luz sobre o personagem:

 

"Nunca fiz curso para ser âncora, então nunca aprendi a postura da voz, a ênfase na locução, a cadência da fala. O melhor que tenho a fazer é não fingir que sou um repórter que não se abala com nada. Também não sou bom de teleprompter e gaguejo um pouco... Nasci em berço privilegiado e tenho plena consciência disso. No fundo, para mim, o maior legado da minha infância foi aprender desde cedo o tamanho do meu privilégio".

 

Bush, como se sabe, só interrompeu as férias uma semana depois de Cooper, e mesmo assim porque foi obrigado. Quando finalmente pousou na região pela primeira vez e viu a devastação (de longe), ficou mal na foto. E não porque o olhar azul metálico, porte arrojado e cabelos prematuramente prateados de Anderson Cooper costumem ofuscar qualquer um. Mas porque o repórter transmitia todo o leque de sensações e sentimentos pelos quais passava o resto da nação. Manteve-se equilibrado na tênue linha que separa o jornalismo investigativo duro do jornalismo militante e agressivo. Não deixou passar nenhuma frase de efeito de seus entrevistados e interrompeu mais de um político ao vivo, com indignação contida. A senadora democrata Mary Landrieu, do Mississippi, que resolveu agradecer às autoridades federais pelos esforços de reconstrução do seu Estado, dificilmente se recuperará eleitoralmente :

 

"Desculpe, senadora, mas... tem um monte de gente aqui que está muito, mas muito extenuada e irada. Ouvir políticos se autocongratulando e trocando elogios quando o corpo de uma mulher está literalmente sendo comido por ratos na rua, há 48 horas, não soa bem".

 

Para Jonathan Klein, presidente da CNN/USA, Cooper é "o antiâncora. Ele não se dá ares nem forja indignação. Ele é, simplesmente, humano". E restabeleceu o elo longamente perdido entre audiência televisiva e noticiário nacional. Ou melhor, entre o fato real, a audiência televisiva e o noticiário nacional. Data de 1968 a última vez em que um só jornalista fez tanta diferença sobre a opinião pública. Era a época em que âncoras ainda permaneciam, justamente, ancorados a suas mesas e cadeiras. Até que um deles, Walter Cronkite, se levantou e foi ver como estava a guerra do Vietnã após a chamada Ofensiva do Tet. Retornou com o veredicto de que ela não poderia ser vencida pelos Estados Unidos, levando o então presidente Lyndon Johnson a admitir, em privado: "Se eu perdi Cronkite, perdi o americano médio".

 

Farejando oportunidades, todas as grandes estrelas do jornalismo político dos EUA enveredaram pela picada aberta por Anderson Cooper e se materializaram na terra arrasada. Com resultados forçosamente desiguais. Christiane Amanpour, cintilante veterana de coberturas de guerras e conflitos mundo afora, pareceu totalmente deslocada em sua jaqueta de campanha e análises editorializadas. Perdera a capacidade de ouvir a sua gente. Outros abusaram da indignação gratuita, da emoção fácil e da pancadaria subitamente liberada contra o governo federal, quando falhas igualmente gritantes ocorreram em nível estadual e municipal, sob administração democrata.

 

Mesmo assim, segundo Peter Levine, da Escola de Políticas Públicas da Universidade de Maryland, essa mudança de postura da televisão americana pode significar o seu retorno aos tempos pré-atentados do 11 de setembro de 2001 - época em que divergir publicamente do presidente da República não era sinônimo de traição à pátria. Acuado, pressionado economicamente e sem conseguir se recuperar da sucessão de feridas auto-infligidas - Washington Post, New York Times, CNN e Dan Rather, último dos âncoras históricos do país, se viram envolvidos em casos de plágio, reportagens inventadas ou apuração deliberadamente tendenciosa -, o jornalismo tornou-se presa dócil da máquina de criar fatos e notícias oficiais que emergiu das ruínas das Torres Gêmeas. E sucumbiu ao receio coletivo de contrariar a maioria de cidadãos que vê na imprensa o vírus liberal a ser erradicado.

 

Só que na Louisiana e no Mississippi os jornalistas chegaram antes da retórica em construção pelos comunicadores da Casa Branca. Desta vez, nem sequer trabalharam atrelados a serviços do Estado - bombeiros, policiais ou fuzileiros navais, registrando ações em curso com diligência mecânica. Chegaram antes, viram por si e reportaram o que viram, expondo o fosso entre o que o governo afirmava estar fazendo e as imagens transmitidas aos lares da nação. Era cru, era aterrador, mas era real, e talvez abra caminho para um outro tipo de cobertura da falência diária chamada Iraque.

 

Talvez. O mesmo Tim Russert da rede NBC, que acossa um patético ex-diretor da Fema com a pergunta "como pôde o presidente estar tão equivocado, tão mal informado?", jamais formulou pergunta semelhante ao atilado vice-presidente Dick Cheney quando o assunto é a fracassada ocupação americana do Iraque.

 

Até a noite de sexta feira não se tinha notícia de que o acesso ao necrotério de emergência montado num depósito gigante de St. Gabriel, perto de New Orléans, fora liberado a fotógrafos. Ali dentro, equipes de casas funerárias, patologistas, especialistas em arcadas dentárias e impressões digitais continuam processando os cadáveres recolhidos, antes de alojá-los em caminhões refrigerados. A padroeira da localidade é Nossa Senhora do Socorro. Não pôde atender a tantas preces.

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