Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, setembro 21, 2005

Quem é herói na República da Conceição José Nêumanne

  O ESTADO DE S PAULO

A estúpida idéia do agente provocador Jair Bolsonaro de levar o coronel aposentado que prendeu José Genoino - na época da guerrilha do Araguaia - à CPI onde o ex-presidente nacional do PT prestava depoimento provocou outro engano, não de proporções idênticas, mas que também exige reparo. No natural desagravo dos ex-colegas do depoente foi mais uma vez conferida a condição de herói da democracia ao ex-militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Idêntico expediente tem sido empregado por outro José, o Dirceu, para construir atenuantes às suspeitas sobre sua atuação como comandante de um grande esquema de aparelhamento do Estado brasileiro por militantes petistas (particularmente os ligados ao Campo Majoritário, que lidera) à custa do "valerioduto".

Mesmo correndo o risco de parecer acaciano, é de bom alvitre começar pela enunciação de um truísmo: os heróis da democracia não têm prerrogativas negadas aos que não se expuseram na luta pela preservação das liberdades na manipulação de recursos públicos. O fato de alguém se ter sacrificado num determinado período de sua vida para assegurar, de forma altruísta, a higidez das instituições não lhe dá nenhum salvo-conduto para avançar sobre a poupança coletiva e, com isso, aumentar o próprio patrimônio pessoal. Ou infringir a lei e a ética para favorecer seu partido político, por mais bem-intencionadas que sejam suas propostas e mais avançados que sejam seus métodos. Ao contrário, o verdadeiro herói da democracia deve pautar-se permanentemente pela correção em palavras, gestos e atitudes pelo exemplo que representa para os outros, os comuns, seus liderados e eleitores.

Feito esse esclarecimento, necessário será fazer o reparo histórico. Nem Genoino nem Dirceu são heróis desta democracia burguesa que Winston Churchill reputava como um mau regime, embora todos os outros se mostrem piores. Quando o tal coronel levado por Bolsonaro à CPI o prendeu, José Genoino fazia parte de um grupo que combatia, é verdade, com bravura, embora de maneira irresponsável e aventureira, a ditadura militar que afrontava a consciência cívica brasileira. Mas o fato de os adversários, ou seja, o tal coronel e o parlamentar provocador que o levou ao depoimento, estarem errados não assegura por si só a correção política do ex-guerrilheiro. Àquela época, Genoino combatia ao lado de verdadeiros democratas contra uma tirania infame. Mas ele não era um destes. Ao contrário, ele combatia uma ditadura, mas pretendia implantar outra, tão infame quanto aquela que infelicitava o Brasil naquela longa noite de trevas. Basta lembrar que ele militava no PCdoB, cujo modelo era o sistema albanês, que, sob o férreo comando de um tal Hoxha, representava o que havia de mais cruel e atrasado na Europa e no mundo, então.

O mesmo se pode dizer do outro José, o Dirceu, aquele que o ex-deputado Roberto Jefferson, presidente nacional afastado do PTB, acusa de ser o chefe de uma camarilha que ocupou o PT e virou quadrilha, depois que o partido chegou ao poder federal. Dirceu se jacta de ter sido um companheiro de armas de Genoino e, da mesma forma que este, combateu uma ditadura de direita para tentar implantar outra, só que de esquerda. Mesmo tendo participado do jogo democrático burguês, como deputado estadual, federal e todo-poderoso chefe da Casa Civil, nunca escondeu de ninguém, justiça lhe seja feita, sua opção pela longeva, violenta e boçal ditadura de Fidel Castro em Cuba. O fato de ter arriscado, como o companheiro citado, a vida no combate à ditadura militar pode torná-lo, também a exemplo do outro, um herói popular, da revolução, do socialismo ou da solidariedade internacional, mas jamais da democracia, esta lenta conquista iniciada na Grã-Bretanha, prosseguida nas colônias americanas daquela antiga potência imperial e adotada na França, antes de se espalhar pelo Ocidente e pelo mundo.

Tanto um José quanto o outro poderiam muito bem se ter tornado heróis da democracia, como alguns ex-companheiros de armas deles o fizeram. César Benjamin, por exemplo, que lutou por uma ditadura contra a outra, depois ajudou a fortalecer o PT, mas logo se viu obrigado a sair do partido ao perceber que seu líder máximo, Lula da Silva, encarregara o sindicalista goiano Delúbio Soares de obter recursos no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para financiar a tomada interna do poder pela tendência Articulação, embrião do Campo Majoritário. Este também foi o caso de outro ex-guerrilheiro, Paulo de Tarso Venceslau, que tentou alertar o mesmo Lula sobre os métodos heterodoxos aplicados pelo compadre e então senhorio deste, Roberto Teixeira, na arrecadação de recursos em prefeituras do partido para financiar suas campanhas.

Herói da democracia pode ser Fernando Gabeira, que arriscou a vida no seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick para tirar José Dirceu, entre outros, da cadeia e salvá-lo da tortura e tem hoje participado, de forma altiva e correta, do fortalecimento das instituições democráticas. A forma corajosa com que defendeu, no microfone de apartes, o Parlamento do aviltamento provocado pelo comportamento heterodoxo do mais novo aliado de Lula, Dirceu e Genoino, Severino Cavalcanti (PP-PE), é, este sim, um bom, o melhor combate pela velha democracia dos Pais Fundadores. Tentar aparelhar o Estado para se garantir no poder e, depois, proclamar a República da Conceição (aquela que ninguém sabe, ninguém viu), contudo, não é heroísmo democrático nem aqui, nem na China, nem na tonga da mironga do cabuletê. O resto é lorota de viciado em comitê stalinista de agitação e propaganda.

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