Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, setembro 08, 2005

O artista do sertão ensaia no exterior AUGUSTO NUNES

JB

Como Lula, Severino é pernambucano, viveu uma infância penosa, migrou para São Paulo, aprendeu a atravessar avenidas e encontrou o caminho da notoriedade. O chefe de governo e o presidente da Câmara dos Deputados adoram ouvir a própria voz. Gostam tanto que nem parecem notar as pancadas no idioma, desferidas com a candura de um bebê que mal aprendeu a falar "mamãe". Melhor que isso, para os dois, só avião.

Com Lula retido em Brasília pela crise interminável, coube a Severino representar o Brasil num encontro promovido em Nova York pela ONU. A descoberta de respingos de lama na batina do arcebispo do baixo clero quase cancelou o embarque. Severino apressou-se a acionar os motores para encobrir o vozerio em terra. Flutuando a 12 mil metros de altitude, o esperto nefelibata voou para longe da gritaria crescente.

Aos 74 anos de idade, 40 como político, Severino já nasceu ultraconservador. Escalado para destrinchar o tema "Parlamento e Cooperação Multilateral, Enfrentando os Desafios do Século 21", é impossível adivinhar o conteúdo da discurseira. O certo é que vem besteira por aí. De que tipo, ninguém sabe.

Severino deslumbraria a platéia se revelasse os segredos da fórmula nativa de "cooperação multilateral" no Parlamento: o "mensalão". Talvez até ganhasse aplausos solidários se contasse aos gringos que os desafios à sua espera são bem mais prementes. Em Brasília, ainda na escada do avião terá de explicar por que andou contando mentiras forjadas para camuflar a negociata cozida no restaurante da Câmara. Mas é improvável que o tribuno do sertão faça tamanha homenagem à sinceridade. Pena.

Se assim agisse, superaria amplamente memoráveis performances protagonizadas em Nova York por pais (e mães) da pátria amada. Nas comitivas brasileiras só não há lugar para critérios coerentes. Atrás de um estadista de primeira como Oswaldo Aranha pode localizar-se uma ministra de quinta como Zélia Cardoso de Mello. Em 1946, Aranha presidiu a sessão da ONU que formalizou a partilha da Palestina e a criação de Israel. Em 1990, Zélia chegou de carruagem a uma festa do bando liderado pelo presidente Collor.

De carruagem. Aquelas que fazem ponto no Central Park. E chegou duas vezes: para não melindrar fotógrafos que haviam perdido a primeira e gloriosa aparição, deu a volta na praça e fez bonito na reprise igualmente triunfal. Parecia princesa de chanchada. Com o Brasil ninguém pode.

Sabia-se disso desde 1985, quando baixou em Nova York o presidente José Sarney, disposto a caprichar no discurso de abertura da assembléia-geral da ONU. Excitado pelas palmas da comitiva aglomerada na fila do gargarejo, o artista brilhou no púlpito. No meio da fala, declamou versos do poeta maranhense Bandeira Tribuzzi. Integrantes da comitiva ficaram curiosos: quem era o bardo que Sarney acabara de apresentar ao mundo? Um amigo de juventude do chefe, alguém informou. Tremendo currículo.

Comovido, um deputado mineiro saudou o presidente com o berro de comício: "Apoiado!" No dia seguinte, festejou a repercussão do grito passeando de limusine. Branca, como preferem noivos do Michigan em lua-de-mel na grande cidade.

Não será desta vez que teremos Severino na principal ribalta da ONU. Mas é bom seguir treinando, porque o Brasil é o avesso e, também, o avesso do avesso. Terceiro na linha sucessória presidencial, Severino pode acabar no Palácio do Planalto como pode acabar numa cadeia. Porque insondáveis são os desígnios dos donos do poder. Se é que restaram pilotos segurando o leme. Qualquer leme, em qualquer proa.

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