Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, setembro 09, 2005

A estréia da ópera João Mellão Neto

O ESTADO E S PAULO

Quando estive em Genebra, na Suíça, alguns anos atrás, recordo-me de ter lido no maior jornal da cidade a seguinte manchete, em letras garrafais: Ópera Aída estréia esta noite. Era a notícia principal do dia. A seguir, ocupando mais de metade da primeira página, fotos do cenário, entrevistas com os atores, comentários sobre a obra, etc. Comentei com a minha mulher: "A última coisa que eu gostaria na vida era ser jornalista aqui." É que no Brasil nunca falta assunto. Há escândalos quase todos os dias. Um mais cabeludo que o outro. Não é preciso pesquisar muito para saber sobre o que escrever. Na Suíça, ao contrário, não acontece nada. A ponto de estréia de ópera ser destaque de jornais.

Negociatas, propinas, subornos, extorsões, chantagens e denúncias, há, por aqui, indecências para todos os gostos. E, o mais importante, tudo isso ocorre com altas autoridades e personalidades da República. Deputados, senadores, ministros, presidentes de partidos e de Casas legislativas, parece que todos, com raras exceções, estão freqüentemente ocupados em intrigas, complôs e conspirações, isso quando não estão diretamente envolvidos em tramóias, trambiques, ilicitudes e patifarias as mais diversas. Ler jornais - bem como escrevê-los - no Brasil é uma atividade, sem dúvida, emocionante.

Minha passagem por Genebra se deu quando eu era mais jovem. Confesso que, então, senti uma certa "pena" dos suíços e da vida monótona que eles levavam. Tudo ali era muito certinho. Ninguém ousava transgredir as regras. Não havia espaço para a "grande aventura" que é viver num país como o Brasil, com todas as emoções que isso acarreta.

Hoje em dia, alguns anos mais maduro, se eu voltasse a Genebra e deparasse, no jornal, com uma notícia semelhante, não sentiria mais pena, não. Teria inveja. Feliz do povo que se empolga com a estréia de uma ópera. Tantos anos se passaram e, por aqui, as manchetes da imprensa continuam a destacar os mesmos escândalos de sempre. As nossas indecências, de tão recorrentes, se tornaram enfadonhas. Não emocionam mais ninguém. Antes eu achava que Deus me havia abençoado por viver num país e numa época tão interessantes. Acreditava que as grandes crises eram momentos edificantes. Os cataclismos políticos, a comoção pública, a indignação moral, tudo isso acabaria resultando em grandes transformações, quer na sociedade, quer no Estado, quer na Nação. Infelizmente, nada disso tem acontecido. As manchetes são as mesmas. Nós, brasileiros, continuamos a chafurdar na lama do nosso subdesenvolvimento institucional. E, o que é pior, o País já se insensibilizou com o peculato, ri das roubalheiras oficiais, acha graça nas vigarices governamentais. Nada mais o surpreende, tampouco algo ou alguém o decepciona. Ao contrário, escarnecemos dos honestos, zombamos dos corretos, mofamos dos coerentes. A ira cívica arrefeceu, ninguém tem mais ânimo e capacidade de se indignar.

De nada nos adiantaram tantos e tantos anos de escândalos e crises. Nada assimilamos. Tudo de errado que já ocorreu, se para algo serviu, não foi para aperfeiçoarmos nossos costumes, e sim para nos endurecer e anestesiar. Somos céticos com relação aos políticos, mas nada fazemos para mudar a política. Não percebemos, talvez, uma grande e imutável lição da História: quem tem nojo da política será sempre governado e subjugado por aqueles que não têm...

Como invejo os suíços! Eles se podem dar ao desfrute de se interessar pela estréia da ópera. E, se o fazem, é porque sabem de antemão que, com a conjuntura política, eles não têm motivos para se preocupar. O sistema funciona a contento. Os homens públicos não roubam e não deixam roubar. Não precisam dedicar-se a proferir discursos moralistas, porque a moral, por ali, não é assunto para discursos nem discussões.

Recordo-me de uma reflexão, se não me engano, de Rui Barbosa, na qual ele analisa o brilho dos homens. Há os que resplandecem como os fogos-de-santelmo, como há os que só logram reluzir como os fogos-fátuos. O fogo-de-santelmo é uma chama azulada que, nas tempestades, surge no topo dos mastros dos navios. Já o fogo-fátuo são faíscas que resultam de gases da matéria orgânica em decomposição. O fogo-de-santelmo, segundo Rui, é uma chama nobre. Ele abençoa e arrebata a alma dos desbravadores e dos destemidos. É uma luz sublime, que exalta os bravos e lhes demonstra, qual um sinal divino, que aquele é o caminho que merece ser trilhado. Já o fogo-fátuo é uma chama rasteira e fugaz. Se, por vezes, ele fascina, é somente aos homens que desconhecem sua natureza. Ele se produz nos pântanos e nos cemitérios. Os cadáveres são seu combustível. E ele só é possível onde há corpos em avançado estado de putrefação.

Qual dessas chamas é a que ilumina as manchetes da imprensa no Brasil?

Não é, sem dúvida, o fogo-de-santelmo. É, com certeza, o fogo-fátuo. Será porque nossa mídia - toda ela - teria a mórbida compulsão de exumar defuntos e remexer a podridão? Não. A imprensa apenas reproduz a realidade que enxerga. E se a donzela não é bela, de nada adianta amaldiçoar o espelho. As fagulhas das sepulturas e as centelhas dos charcos, infelizmente, são a matérias básicas de que se alimentam nossos jornais. Não por sordidez dos profissionais da notícia, mas sim porque, em todo este triste Brasil, simplesmente não há fogos-de-santelmo a registrar.

Eu anseio, sinceramente, que um dia os meus filhos, ou os filhos dos meus filhos, ainda possam vir a ler, nos nossos jornais, manchetes sobre estréias de óperas. Quando isso ocorrer, será porque não haverá mais escândalos a reportar. E o nosso país, enfim, se terá tornado uma verdadeira Nação.

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