Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, setembro 02, 2005

"Deputado não cassa deputado!"POR João Mellão Neto

O ESTADO DE S PAULO

Lembro-me de que, nos meus tempos de Câmara, sempre que ocorria um processo de cassação de mandato, havia algo como uma centena de parlamentares que se manifestavam frontalmente contrários, aos gritos de "colega não julga colega! Deputado não cassa deputado!" Felizmente, eles nunca conseguiram evitar a condenação de ninguém. Mas a linha de raciocínio existe e, creio eu, continua a ter força na Casa. São parlamentares para quem o "esprit-de-corps" fala mais alto que qualquer eventual clamor externo. A justificativa ideológica que apresentam é a de que os mandatos eletivos são sagrados, uma vez que emanam da vontade popular: "Quem o povo elegeu, ninguém, no mundo, tem legitimidade para cassar." O então deputado comum Severino Cavalcanti, bem me recordo, era um dos maiores entusiastas dessa facção.

Oriundos, geralmente, das regiões mais atrasadas do País, eles pouco se importam com a imprensa e com a comoção pública que a acompanha. Logram eleger-se com os votos de cidadãos humildes e bastante desinformados e, assim, seus redutos eleitorais estão preservados contra a grita da mídia. Seus eleitores nem sequer fazem idéia do que eles fazem ou deixam de fazer no Congresso. Podem, portanto, dar-se ao luxo de contrariar a opinião pública porque sabem que isso em nada contará quando buscarem reeleger-se.

O mundo dá voltas e eis que um deputado como Severino chega à presidência da Câmara. A todos os que me pedem referências dele eu sempre explico que se trata de um sujeito sem grandes luzes, porém autêntico. Ele não é um populista, nem sequer um demagogo. Suas opiniões, por mais retrógradas ou absurdas que sejam, ele não as esconde de ninguém. E, uma vez no comando da Casa, tudo fará para impô-las ao conjunto dos deputados.

As suas recentes declarações - defendendo "penas mais brandas" para os parlamentares implicados no atual escândalo - não me surpreendem. Elas são plenamente coerentes com suas verdades e ele nunca deixou de expô-las a quem se dispusesse a ouvir. Aqueles que o guindaram à presidência sabiam exatamente quem ele era. Mas, no afã de derrubar o candidato oficial do governo - o sombrio e malquisto Greenhalgh -, preferiram Severino como mal menor. Acreditavam que, uma vez no cargo, ele seria facilmente administrável.

Qual o quê! O homem é teimoso como um jegue. Só age a seu talante, de acordo com suas certezas mais íntimas.

E estas representam o que há de mais atrasado na política brasileira.

Por entender que "deputado não cassa deputado", ele de tudo fará para evitar as punições. Sem nenhuma má-fé, mas sim por legítima convicção. Caberá ao conjunto da Câmara mover céus e terras para demovê-lo. Já será uma grande vitória se o convencerem a tão-somente cruzar os braços. Severino é algo assim como um incômodo piano de cauda, desses que se recebem de herança de velhas tias. Descartá-lo é uma desfeita, tocá-lo ninguém sabe, acomodá-lo é impossível, já que não cabe em lugar nenhum...

Que fazer, então? O jeito é ir em frente, com, sem ou apesar dos numerosos severinos.

Cassações são sempre traumáticas. Independentemente das diferentes ideologias que professam, os deputados, pelo convívio diário, acabam forçosamente se tornando amigos. Como se diz na Infantaria, é muito penoso matar alguém de quem se conhece o branco dos olhos.

Mas não se pode vacilar. O inimigo que se poupa agora será, fatalmente, o seu algoz depois. Haverá eleições gerais daqui a um ano. Quem salvar um mandato hoje poderá perder o seu próprio amanhã.

Os srs. deputados têm de entender que no campo moral não existem meias-verdades. As pessoas ou são honestas ou simplesmente não são. Quem rouba um vintém não é melhor do que quem rouba um milhão.

Há quem alegue, como Severino, que não ficou comprovada a existência do famigerado "mensalão".

Trata-se de um argumento cínico, impudico e obsceno.

Já é mais do que evidente que milhões e milhões foram indevidamente repassados a deputados com a finalidade de sabe-se-lá-o-quê. Se o dinheiro foi pago à vista ou em prestações mensais, pouco importa. Se foi para cobrir despesas eleitorais ou serviu para engordar o próprio bolso, também não. Não se julga o ladrão pelo que faz com seu roubo.

A hipótese de essa dinheirama toda ter sido distribuída por mera benemerência também está descartada. No mesmo período em que se davam os pagamentos, não por coincidência, dezenas de parlamentares mudaram de partido, apoiaram o governo em votações difíceis e de ferrenhos oposicionistas se transmutaram em dóceis cordeiros obedientes ao poder.

Infelizmente, não será possível descobrir todos os beneficiários dessa cornucópia. Podem ser 60, 80 ou mesmo mais de uma centena. Mas já se sabe, ao menos, o nome daqueles que se dispuseram a ir buscar o dinheiro. São os 17 parlamentares indicados pelo relator da CPI. Mais o José Dirceu, que, como ministro, teria sido o mentor do esquema.

Pela honra do Parlamento, eles devem ser implacavelmente cassados. No ano que vem há eleições.

E não será apenas o mandato desses 18 infames que estará em jogo, mas sim o de todos os 513 que compõem a Câmara Baixa.

"Deputado não cassa deputado!", protestarão os severinos de sempre. O problema é que, se os deputados não cassarem alguns deputados agora, os eleitores, nas urnas, haverão de cassar todos, depois.

É uma questão de anatomia. Aquele que se curva perante os poderosos, ao fazê-lo, expõe o seu traseiro ao povo.

E o povo, sem dúvida, haverá de chutá-lo.

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