Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, setembro 06, 2005

AUGUSTO NUNES Severino cria nova moeda: o $everino

JB

Nelson Rodrigues dizia que, quando topava nas ruas do Rio com o escritor Carlinhos Oliveira, assaltava-o a idéia de oferecer alpiste ao amigo capixaba. Corpo miúdo, pernas mirradas, os braços muito magros estendidos como asas sem serventia, Carlinhos lembrava um passarinho. Certamente apreciaria a ração de alpiste, provocava Nelson Rodrigues.

A aeromoça da TAM designada neste 4 de setembro para a primeira classe do vôo JJ 8097, na rota Paris-São Paulo, resistiu bravamente à tentação de oferecer alpiste àquele viajante que parecia um pintassilgo. Soube a tempo que a figura na poltrona, embora voe compulsivamente, é gente quase como a gente. Quase, porque ministro de Estado é um pouco mais.

A jovem se aproximou de Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores do governo Lula, e balbuciou as perguntas de praxe. Já examinara o cardápio do jantar? Aceitaria algum vinho? "Só um copo de leite", cortou Amorim. A expressão sonolenta combinava com o traje que havia substituído, numa ligeira escala no banheiro do avião, a roupa de trabalho. Vestia agora o uniforme perfeito para o repouso de um guerreiro.

O Amorim que entrou foi o combatente extenuado por dois dias de duelos diplomáticos e comerciais em Bruxelas. Usava calça-bege, camisa azul-claro, gravata azul-marinho, blazer e sapatos pretos. O Amorim que saiu do banheiro exibia um pijama cinza-chumbo, chinelas pretas de vovô, protetores auriculares e tapa-olho. Só faltava o copo de leite.

Revistas, filmes, música?, sugeriu a aeromoça. Não, obrigado. Jornais brasileiros do dia? Não, crispou-se levemente a voz gentil. As recusas foram endossadas com movimentos de cabeça pelo diplomata que acompanhava Amorim. O avião mal deixara o solo e o ministro já ressonava, espalhado pela poltrona transformada em cama. (Compunha um bom dueto com o filhote do Itamaraty deformado por maneirismos de ordenança.) Nas dez horas seguintes, o chanceler dormiria o que Lula tem chamado de "sono dos justos".

Dos justos, dos amorais e dos desinformados, ressalve-se. Caso tivesse folheado os jornais, a travessia da madrugada seria decerto agredida por sobressaltos, talvez por pesadelos. Todas as manchetes destacavam patifarias atribuídas a Severino Cavalcanti, homenageado em 1º de setembro com a mais alta condecoração do Itamaraty. A honraria fora entregue por Lula.

Cúmplice da idéia, o chanceler abrilhantou a festa antes de embarcar para a Bélgica. Ao decolar no dia 2, anexara ao currículo a participação na trama destinada a afagar um parlamentar que desonra o Poder Legislativo e o Brasil decente. Como neste país dilacerado as coisas, por piores que estejam, podem sempre piorar, pioraram muito para Amorim em menos de 70 horas.

Enquanto jogava conversa fora em Bruxelas, dezenas de homens honrados planejavam devolver a condecoração conferida a Severino. Seria um gesto sem precedentes. Tampouco Severino não tem similares: os jornais que Amorim não leu tratavam da última do arcebispo do "baixo clero". Ele é acusado de trocar mensalidades de R$ 10.000 pelo direito de exploração do restaurante da Câmara.

O tamanho da propina deve ser incluído entre as provas da acusação: todas as contas que faz resultam nessa quantia. Impedido de conceder o aumento salarial de R$ 10.000, cumpriu a promessa aos parlamentares incorporando a bolada à verba de gabinete.

Rumo ao cadafalso, o canastrão desmoralizado pelo deputado Fernando Gabeira pode ter criado a unidade monetária do pântano - o $everino - feita sob medida para a contabilidade do mensalão. Um $everino corresponde a R$ 10.000. O Professor Luizinho vale 2 $everinos. E quanto vale Severino em $everinos? Antigos comparsas já sabem. Logo todos saberemos.

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